Por Fernanda Melchionna*
Em artigo publicado no Estadão, o vice-presidente Hamilton Mourão apresenta suas preocupações com a situação do país de uma forma que mais parece uma ameaça. "A esta altura está claro que a pandemia de Covid-19 não é só uma questão de saúde (…) e por suas consequências pode vir a ser de segurança". O que significa exatamente a crise atual se tornar uma crise de segurança? Seriam acionadas forças de segurança para conter a crise?
O histórico de flerte dos líderes do bolsonarismo com o autoritarismo faz a afirmação do vice-presidente ainda mais perigosa. Em setembro de 2018, já em campanha eleitoral, Mourão havia afirmado que "na hipótese de anarquia, poderia haver autogolpe do presidente com apoio das Forças Armadas". Com medo de que mobilizações como as que ocorreram no Chile, em outubro de 2019, chegassem ao Brasil, Eduardo Bolsonaro afirmou que "a resposta pode ser via um novo AI-5". Em meio à pandemia, o próprio Bolsonaro incentivou e participou de manifestações que exigiam fechamento do Congresso Nacional e do STF.
Conforme se enfraquece, por sua postura negacionista frente à Covid-19 e sua incapacidade de governar em meio à crise, Bolsonaro cada vez mais inflama seus fanáticos correligionários. A junção entre a ignorância e o ódio é uma bomba relógio e tem como única resultante possível a violência, como vimos no 1º de maio no DF, um funcionário (terceirizado) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos agredir uma enfermeira que exigia condições de trabalho para salvar vidas. Há algo de distópico nessa cena lamentável, mas ela mostra que ninguém se torna menos perigoso por sua estupidez.
Mourão diz que a crise é mais que sanitária. É verdade. Ela é institucional, pois o presidente ultrapassa os limites de sua irresponsabilidade. Interfere politicamente nas instituições que deveriam ser independentes, transforma os Ministérios em uma dança das cadeiras de incompetentes e, tragicamente, zomba da dor de milhares de famílias que perderam seus entes queridos passeando de jetski e perguntando, e daí? O que quer que eu faça? Faça as malas, eu diria. Não está à altura de sua responsabilidade.
A crise é também econômica, pois a agenda ultraliberal de Paulo Guedes, que antecede a pandemia, fez uma devastação nos direitos trabalhistas, nos empregos e nos salários e, logo, na economia como um todo. O trabalho informal atingiu o equivalente a 38,4 milhões de pessoas no ano passado e pode chegar a taxas nunca vistas com a entrada do novo coronavírus em nosso país.
Se não fosse a mobilização das trabalhadoras e trabalhadores da saúde e nossa oposição, a crise sanitária poderia ter contornos ainda mais desesperadores. Teríamos que enfrentar uma pandemia sem o SUS. Guedes há muito quer privatizar os hospitais, cortar o salário dos servidores e transformar o direito à saúde em mercadoria cara para os que mais precisam. Já que lhe parece bem bater continência ao American Way of Life, e o artigo de Mourão não foge à regra, o sistema de saúde privado dos EUA deveria servir como exemplo do que não fazer.
O governo, que queria dar apenas R$ 200 de auxílio emergencial, foi derrotado pela Câmara e teve que pagar os R$ 600, mas o faz humilhando a população em filas quilométricas, atrasando os pagamentos concedidos a pouco mais da metade dos que solicitaram e sem previsão de pagamento da segunda parcela. Tudo para forçar o relaxamento do isolamento social, em nome da saúde dos mercados e não da saúde do povo.
Os lucros sempre podem esperar, mas as vidas, não. Entretanto, isso é o oposto do que o governo de Hamilton Mourão faz. Concederam R$ 1,2 trilhão aos bancos e resistem em pagar um auxílio que impacta o orçamento em apenas R$ 90 bilhões. Os CPFs passam fome, enquanto os CNPJs fazem lobby no Supremo Tribunal Federal! As Forças Armadas nunca deveriam servir a um governo que as desmoraliza desse jeito, muito menos salvá-lo de sua própria queda.
Sim, a crise é grave e pode piorar se o governo permanecer. O Brasil tem reservas democráticas suficientes para impedir que aventureiros se apropriem do pouco de democracia que conquistamos a duras lutas. Temos memória coletiva. Lembramos de quando discordar significava ir presa, quando se organizar poderia ser motivo de estupro, tortura, desaparecimento, morte. Lembramos de quando a polícia era política e censurava-se a inteligência e a cultura nacionais. Lembramos bem. Por isso mesmo não permitiremos que aconteça de novo.
*Fernanda Melchionna é líder do PSOL na Câmara dos Deputados e pré-candidata a prefeita de Porto Alegre
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum