O silenciamento da pandemia na África pela mídia brasileira, por Paulo Victor Melo

"Há uma invisibilização sobre o que se passa no continente em que atualmente vivem mais de 1 bilhão e 200 mil pessoas"

Foto: GCIS
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Por Paulo Victor Melo* Continente com maior número de países, 54. Região do mundo com mais países em que a língua oficial é a mesma que a brasileira. Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe falam, ainda que com as variações linguísticas de cada local, o mesmo idioma que nós. Local de onde veio parte expressiva da população formadora do nosso país. Nada disso parece ser suficiente para que a mídia brasileira adote outra postura sobre a pandemia do novo coronavírus na África que não seja o silenciamento, entendido aqui como uma política de produção de sucessivos silêncios, que atende a relações de poder, indicando uma interdição, um “não poder dizer”. Se sobram conteúdos sobre números de infectados, mortos e ações de governo de países como Estados Unidos, Alemanha, Itália, Espanha e China, por exemplo, há uma invisibilização sobre o que se passa no continente em que atualmente vivem mais de 1 bilhão e 200 mil pessoas e que, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas abrigará, em 2050, 21% da população mundial. O caso do G1 Para apontar pistas sobre o comportamento de parte da mídia brasileira sobre a pandemia no continente africano, fiz um levantamento de conteúdos divulgados pelo G1, limitando a busca ao mês de abril. Além de produções próprias, o G1 disponibiliza conteúdo de jornalismo das outras diversas empresas do Grupo Globo, como a Rede Globo e a Globo News, sendo, portanto, o mais expressivo portal de notícias do principal conglomerado de mídia do país. Pesquisando a expressão “África” no G1, encontrei 15 conteúdos no mês de abril, sendo 8 de programas da Rede Globo (3 do Jornal Hoje; 3 do Bem Estar; e 2 do Hora 1), 4 da Globo News (2 do Jornal das Dez; 1 do Estúdio i; e 1 do Jornal da Globo News) e 3 produzidos pela própria equipe do G1. A título de comparação, quando pesquisei a expressão “Angela Merkel”, chanceler do país que tem se destacado no enfrentamento à Covid-19, encontrei 21 conteúdos publicados exclusivamente sobre a Alemanha (excluídas as menções ao país em conteúdos sobre a Europa) pelos diferentes veículos do Grupo Globo em um mês. A diferença de tratamento se escancara quando comparada com a cobertura sobre os Estados Unidos. Ao pesquisar o termo “Donald Trump”, identifiquei 130 diferentes conteúdos sobre a pandemia da Covid-19 naquele país, com informações sobre os números em diversos estados, ações de prefeitos, governadores e presidente, discussões variadas sobre equipamentos de proteção individual, disseminação de Fake News, problemas do sistema privado de saúde, análises sobre as movimentações dos líderes políticos, pesquisas desenvolvidas por universidades estadunidenses. Racismo institucional e Necropolítica Ainda que o caso aqui analisado tenha sido especificamente sobre o G1, o silenciamento sobre a África é, certamente, uma marca presente na maioria da mídia privado-comercial brasileira. E não apenas sobre o coronavírus, cabe frisar. Qualquer observação minimamente atenta sobre a programação televisiva ou conteúdos dos portais de notícia evidencia uma tentativa permanente de apagamento do continente africano, confirmando o que o professor Muniz Sodré ressaltou sobre o racismo como parte de uma estrutura institucional dos meios de comunicação, suscitada por fatores como negação, quando tendem a negar a existência da questão racial e do racismo; o recalcamento, quando, em seus diferentes modos de produção, recalcam aspectos identitários positivos das manifestações simbólicas de origem negra; a estigmatização, referência à distinção entre a identidade social virtual (aquela que se atribui ao outro) e a identidade social real (conferida por traços efetivamente existentes), sendo o estigma a marca da desqualificação da diferença; e a indiferença profissional, com os meios pautando-se pelos ditames do comércio. Em um trabalho publicado em 2010, Paulo Vinicius Silva, Wellington Santos e Neli Rocha já destacavam que os meios de comunicação, especialmente em contextos latino-americanos, participam da sustentação e produção do preconceito étnico-racial, que tem o eurocentrismo como base civilizatória. Na opinião dos autores “as comunicações midiáticas em geral e televisivas em particular apresentam duas características comuns aos discursos racistas observados em países diversos da América Latina: a branquitude normativa (o branco que se coloca discursivamente como padrão de humanidade) e a estética ariana (hipervalorização de traços europeus, particularmente nórdicos) como forma de hierarquização racial e desvalorização, principalmente, de indígenas e negros”. Outra perspectiva de análise pode ser feita a partir do conceito de “Necropolítica”, desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe para se referir à produção de mortes em larga escala, pela determinação política de quais corpos têm direito à vida e quais devem morrer. Considerando a estratégia de silenciamento dos povos  da África pela mídia brasileira, pode-se afirmar, portanto, que há uma participação dos meios de comunicação na consolidação da necropolítica, quando se estabelece quais sujeitos têm importância a ponto de merecer destaque diário em suas coberturas e quais podem morrer que não são sequer mencionados. Sobre a Covid-19 na África E, ainda que escondidos pela mídia brasileira, os que morrem na África são cada vez mais. A respeito disso, a Organização Mundial da Saúde, presidida inclusive por um africano, Tedros Adhanom, registrou um aumento de 43% dos casos de Covid-19 na última semana, já sendo quase 30 mil infectados e mais de 1200 mortos em solo africano. A esse crescimento observado no continente, deve-se somar como fatores que ampliam a preocupação: os possíveis elevados índices de subnotificação - considerando que, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças da África, a capacidade dos países de realizar testes é extremamente limitada; os precários sistemas de saúde, com falta de leitos, unidades de terapia intensiva, médicos especialistas e equipamentos médico-hospitalares; e o negligenciamento de serviços essenciais para o combate a outras doenças graves, como a malária. Dados da ONG Comitê de Resgate Internacional sobre leitos de UTI exemplificam esse cenário: na Gâmbia, não existiam leitos antes da pandemia; a Somália só tem 15 leitos para quase 15 milhões de pessoas; o Malauí, 25 para 17 milhões; e a Uganda, 55 para 43 milhões. A realidade de falta de acesso a água e sabão também desnuda a gravidade do problema. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), 63% das pessoas que vivem em áreas urbanas da África Subsaariana não têm condições sequer de lavar as mãos. Ainda em 19 de março, quando as mortes no continente pela Covid-19 eram 16, a OMS emitiu um comunicado alertando que a África “deveria se preparar para o pior”. Pouco mais de um mês após, já são mais de 1200, um crescimento que faz a organização qualificar a situação na África como “uma evolução dramática”. Ignorando todos esses aspectos, a mídia privado-comercial do país mais negro fora da África contenta-se em dedicar apenas alguns segundos ou poucas linhas de sua cobertura. *Paulo Victor Melo é doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, jornalista, professor e pesquisador. *Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.