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DEBATES
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Por Carlos Sávio G. Teixeira*
A reflexão política é uma das práticas analíticas mais antigas que conhecemos. Nascida na Grécia antiga e exercida então como um ramo da Filosofia, só veio a consolidar-se como ciência no século XX, tornando-se a mais jovem dentre as ciências sociais. Desenvolveu-se tendo como uma de suas principais premissas o esforço para revelar a racionalidade presente nas formas de organização política das sociedades. O seu axioma fundamental tem sido o de que a realidade é sempre, de alguma forma, racional, cabendo aos cientistas políticos explicar a natureza de ambas, a realidade e sua racionalidade. Uma versão do hegelianismo de direita.
A partir da segunda metade do século passado esse campo de saber passou a sofrer uma influência avassaladora da academia norte-americana, de tal maneira que se pode defini-la como uma disciplina praticamente estadunidense, onde duas ideias são predominantes metodológica e normativamente, com grau de articulação crescentemente intenso entre elas: a teoria da escolha racional e o redistributivismo compensatório resultante da teoria da justiça de Rawls. A partir dos anos 90, depois da queda do muro de Berlim, a sombra já esmaecida de outro tipo de organização econômica e política ao tipo representado pela combinação de economia de mercado e democracia representativa, tal como praticado nos EUA, desapareceu. Parecia que ciência e política haviam se encontrado num casamento difícil de ser desfeito, cujo significado concreto foi o estabelecimento do horizonte ideológico que se pode chamar de neoliberalismo social democrata: sociedades cheias de desigualdades dominadas por discursos de preocupação social - mas totalmente impotentes para enfrentar o fulcro causal (a distribuição original das vantagens econômicas e educacionais) daquelas desigualdades.
Esta circunstância se desenrolava sob o controle da dialética entre o baixo nível de expectativas intelectuais e o reduzido nível de expectativas políticas, sem perturbações não assimiláveis, até meados desta década. A partir de então, surgiram movimentos de opinião (sob o forte incremento das novas tecnologias de comunicações) que levaram à formação de uma maioria eleitoral nos EUA, na Europa e por fim no Brasil, que se insurgindo, cansada das promessas irrealizadas pelo acordo neoliberal social democrata, abraçou representantes e projetos de extrema direita. Abriu-se uma clareira entre a compreensão da realidade pelas lentes de maiorias irritadas com sua situação de subcidadania persistente e o aparato explicativo dominante - e em grande medida justificador - da ordem social. E assim a racionalidade mobilizada para a análise de eventos políticos foi sendo decisivamente abalada.
Como a filosofia política contemporânea (em sua dimensão normativa) e a ciência política (em sua dimensão teórico-medodológica) são praticamente norte-americanas, ambas sofrem de um defeito causado pela ideologia dominante dos EUA, segundo a qual no ato de fundação da república americana uma sociedade sem classes fora criada. Esse incrível dogma tem implicações não apenas para a formação da identidade nacional daquele país, mas também nos contornos intelectuais: o tema da desigualdade de classes e todos os seus corolários analíticos nunca ganhou centralidade nos EUA - que é o país mais desigual dentre os mais desenvolvidos. Este déficit impõe evidentes lacunas não só à compreensão sociológica da ordem social, mas também ao campo das análises dedicadas à esfera política institucional. É o caso da aferição da racionalidade especifica de classes e suas frações em contextos como o de países extremamente desiguais como são EUA e Brasil. [1]
A inesperada vitória de Donald Trump na eleição presidencial dos EUA em 2016, onde erros acintosos de análise do processo eleitoral apontavam a vitória da candidata derrotada Hilary Clinton, tida como franca favorita até o dia da apuração, é um exemplo notável do limite analítico da teoria da escolha racional aplicada a processos eleitorais. Depois da vitória de Trump, muitos analistas insistiram, sem dar a mão à palmatória, que a transposição de seu estilo como candidato para o exercício presidencial seria a sua ruína.
No Brasil, o fenômeno Bolsonaro tem representado também um duro golpe na ciência política. Três teses centrais foram derrubadas até agora: 1) a de que um candidato à presidência sem capitais como tempo de TV e base partidária jamais alcançará a vitória; 2) a de que sem a formação de uma base partidária no Congresso a governabilidade não se sustenta [2]; 3) a de que o apelo ao apoio direto de parte da sociedade, introduzindo uma lógica de mobilização extra-institucional no exercício governamental, gera crise com desfecho traumático para o presidente.
Nem mesmo o contexto de total descrédito do sistema político brasileiro fez os analistas desconfiarem da possibilidade de novidade. Eles não levaram a sério, inclusive, a barulhenta manifestação de impaciência de parte da sociedade brasileira cinco anos antes da eleição de Bolsonaro. Em 2013, a primeira contestação à institucionalidade brasileira pós-democratização foi manifesta: protestos inicialmente dirigidos à questão do transporte público, cuja relação perversa de preço alto e qualidade baixa é quotidianamente sentida principalmente pelas classes populares, e que logo foram colonizados pelo grande avatar da cultura política nacional, “o combate à corrupção”. Em 2014, às vésperas da eleição presidencial, foi iniciada uma grande operação envolvendo o MPF, o poder judiciário e a PF, provocando uma explosão de escândalos revelados à exaustão pelos meios de comunicação mais relevantes, com desdobramentos até 2018.
Esse processo acabou saindo do controle faccioso a que estava submetido e, em escala inédita em termos de intensidade, alcançou a população brasileira já exausta diante da secular e insistente incapacidade do sistema político de enfrentar de forma satisfatória uma das maiores desigualdades entre todas as sociedades contemporâneas, cuja expressão inequívoca está nos serviços públicos de péssima qualidade prestados principalmente às classes populares. Em associação moralista e confusa, passou-se a vincular genericamente a condição de subcidadania da maioria dos brasileiros, desde sempre naturalizada, à “roubalheira geral”. Daí ao voto no ex-capitão do Exército foi um pequeno passo [3].
Muitos estudos eleitorais tendem a encarar as eleições como um plebiscito sobre o governo incumbente. Esta tese goza de muita influência sobre os atores políticos e ajuda a orientar as estratégias eleitorais de partidos e candidatos. Esse parece ter sido o caso da avaliação do PT e de Lula na definição de seus passos na eleição presidencial de 2018. Informados por cientistas políticos, imaginaram que a eleição seria um plebiscito acerca do governo Temer, supondo que a maioria dos eleitores tinha, enfim, entendido o verdadeiro sentido do “golpe” contra Dilma. Não perceberam que a eleição se desenhava como um plebiscito, mas com sentido completamente diferente: a questão principal não era a avaliação do governo moribundo de Temer e sim sobre a volta do PT ao poder central. E a maioria dos brasileiros revelou estar disposta a eleger um tipo como Bolsonaro para evitar o retorno petista.
Após a consistente vitória de Bolsonaro, alcançada em dois turnos, a racionalidade dominante que já havia sido desmoralizada nos EUA dois anos antes, experimentava uma perplexidade tal que a levava a errar ainda mais nas tentativas de explicar o seu próprio fracasso, atribuindo o sucesso de Bolsonaro nas urnas ora à facada que o vencedor sofrera durante a campanha, ora à disseminação de fake news durante o processo eleitoral, ambas as teses mal disfarçando o preconceito com a maioria do eleitorado, considerado culturalmente incapaz e presa fácil de manipulações. [4] Mas o pior é que esta prática “analítica” era agora estendida às previsões acerca do futuro governo. Muitos apostavam na incapacidade do ex-deputado para se adaptar às exigências que o cargo impõe, assim como na impossibilidade de realizar suas imprecisas promessas de campanha, já que teria enormes dificuldades para formar um “governo de coalizão”.
Como sabemos, o governo Bolsonaro vem praticando um estilo em completo desalinhamento com os padrões convencionais de ação política institucional, gerando muitas confusões e crises. Estas, porém, nunca tiveram o poder de forçar o governo a reorientar seu modo de operação. No fundo, essa anormalidade funcional acabou ajudando a consolidar, de um lado, a percepção no Presidente e em seu círculo mais próximo, de que esse arranjo baseado no conflito permanente ajudava a fidelizar parte considerável de seu eleitorado e, de outro, que esse quadro propiciava competitividade eleitoral tendo em vista à sua reeleição.
O fato de o agente do desafio à ciência política comportar-se de maneira aberrante não deve suscitar a tentação de se tapar o sol com a peneira. O acúmulo de previsões frustradas e desfechos imprevistos exige mudança decisiva dos modelos de aferição da racionalidade política das sociedades, arbitrário ao supor uma autonomia permanente do sistema político em relação à agência de classes e grupos que muitas vezes geram reconfigurações internas à estrutura social, com impactos na reformulação das preferências eleitorais. Além disso, tornou-se imperioso também à filosofia política alargar radicalmente o seu horizonte normativo, para ser capaz de entender que posições sociais diferentes podem expressar aspirações muito distintas daquelas compartilhadas por consensos produzidos pela elite do poder e do conhecimento, como o neoliberalismo social democrata, cujo slogan “inclusão social” esconde a manutenção da estrutura não transformada.
[1] Na dimensão da análise política, uma das consequências causada pelo tipo de “fantasia” presente na tese da suposta excepcionalidade americana é uma dupla tentação: por um lado, a de se supor uma grande autonomia da institucionalidade política em relação à estrutura da sociedade e, por outro, se supor um predomínio quase absoluto de uma racionalidade econômica curta como base para as opções políticas e eleitorais dos cidadãos. Na dimensão da análise social, uma das confusões mais notáveis nos EUA, é a que trata desigualdade racial - e, mais recentemente, até de gênero - como antecedente à desigualdade da estrutura de classes. Estas distorções analíticas cobram alto preço na descrição da realidade. [2]Após o impeachment da presidente Dilma, uma boa parte dos analistas políticos previu que a tão almejada “estabilidade” havia finalmente sido alcançada: afinal, assumira o comando do país um especialista com larga experiência em negociações e transações políticas, tendo o Congresso como epicentro do processo. Para surpresa geral, Temer não conseguiu aprovar a tão venerada pelo establishment reforma da previdência. A proeza coube ao governo Bolsonaro, desestabilizador da república, que sem maiores dificuldades mudou as regras previdenciárias, adequando-as às prescrições do financismo fiscalista. [3] A maioria esmagadora de analistas - formada por cientistas políticos, sociólogos, filósofos, economistas, jornalistas, estrategistas de campanha eleitorais e marqueteiros -, assim como os principais candidatos à presidência, afirmava que as chances de Bolsonaro sagrar-se vencedor eram inexistentes, agora não mais somente pela falta de tempo de TV e base partidária, mas também pelo tipo de discurso do candidato e suas dificuldades culturais e cognitivas, embaladas por uma personalidade disruptiva. Uma raríssima exceção foi Maurício Moura, diretor do Instituto de Pesquisa Ideia Big Data, que em fevereiro de 2018, portanto antes da definição das candidaturas presidenciais do pleito que ocorreria em outubro, previu com base em argumentos lógicos e bem fundamentados empiricamente não somente a possibilidade de vitória de Bolsonaro, como sua probabilidade se a disputa viesse a ocorrer entre o defensor da ditadura militar e um candidato do PT (Ver, El País, 19/02/2018). [4] As teses elitistas que desmerecem a racionalidade das pessoas comuns, consideradas culturalmente débeis, são compartilhadas por autores de orientações teóricas e inclinações políticas bastante díspares como Theodor Adorno e Joseph Schumpeter, por exemplo. *Carlos Sávio G. Teixeira é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). *Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.
[1] Na dimensão da análise política, uma das consequências causada pelo tipo de “fantasia” presente na tese da suposta excepcionalidade americana é uma dupla tentação: por um lado, a de se supor uma grande autonomia da institucionalidade política em relação à estrutura da sociedade e, por outro, se supor um predomínio quase absoluto de uma racionalidade econômica curta como base para as opções políticas e eleitorais dos cidadãos. Na dimensão da análise social, uma das confusões mais notáveis nos EUA, é a que trata desigualdade racial - e, mais recentemente, até de gênero - como antecedente à desigualdade da estrutura de classes. Estas distorções analíticas cobram alto preço na descrição da realidade. [2]Após o impeachment da presidente Dilma, uma boa parte dos analistas políticos previu que a tão almejada “estabilidade” havia finalmente sido alcançada: afinal, assumira o comando do país um especialista com larga experiência em negociações e transações políticas, tendo o Congresso como epicentro do processo. Para surpresa geral, Temer não conseguiu aprovar a tão venerada pelo establishment reforma da previdência. A proeza coube ao governo Bolsonaro, desestabilizador da república, que sem maiores dificuldades mudou as regras previdenciárias, adequando-as às prescrições do financismo fiscalista. [3] A maioria esmagadora de analistas - formada por cientistas políticos, sociólogos, filósofos, economistas, jornalistas, estrategistas de campanha eleitorais e marqueteiros -, assim como os principais candidatos à presidência, afirmava que as chances de Bolsonaro sagrar-se vencedor eram inexistentes, agora não mais somente pela falta de tempo de TV e base partidária, mas também pelo tipo de discurso do candidato e suas dificuldades culturais e cognitivas, embaladas por uma personalidade disruptiva. Uma raríssima exceção foi Maurício Moura, diretor do Instituto de Pesquisa Ideia Big Data, que em fevereiro de 2018, portanto antes da definição das candidaturas presidenciais do pleito que ocorreria em outubro, previu com base em argumentos lógicos e bem fundamentados empiricamente não somente a possibilidade de vitória de Bolsonaro, como sua probabilidade se a disputa viesse a ocorrer entre o defensor da ditadura militar e um candidato do PT (Ver, El País, 19/02/2018). [4] As teses elitistas que desmerecem a racionalidade das pessoas comuns, consideradas culturalmente débeis, são compartilhadas por autores de orientações teóricas e inclinações políticas bastante díspares como Theodor Adorno e Joseph Schumpeter, por exemplo. *Carlos Sávio G. Teixeira é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). *Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.