Corpos empilhados e empatia enterrada. Como chegamos aqui?, por Henrique Rodrigues

"Fala-se de dinheiro como se a vida humana estivesse numa vitrine, ou num saco de sementes, a granel, numa feira de rua. Dividir a atenção e os esforços, colocando lado a lado a vida e o 'mercado', é uma vergonha ultrajante que teremos, os sobreviventes, que levar cravada na testa, a ferro e fogo"

Capa do Washington Post com destaque para foto de cemitério em São Paulo (foto: reprodução)
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Por Henrique Rodrigues*

Uma pista de patinação no gelo em Madrid, na Espanha, tornou-se um frigorífico para milhares de cadáveres das vítimas da Covid-19. Na Itália, algumas pessoas mantêm os corpos de familiares em casa, porque o serviço funerário não dá conta dos chamados. Pelas ruas de Nova Iorque, nos EUA, empilhadeiras amontoam sacos brancos, com mortos, em paletes de madeira.

O horror está por todo os cantos. Até por aqui, no Brasil, onde um apresentador de telejornal transmitiu imagens aéreas, ao vivo, de enterros numa porção de covas rasas abertas emergencialmente, num cemitério público.

Não o condeno. São os fatos e o destino que nos foram impostos.

No entanto, não há dissabor maior do que a indiferença com que boa parte das pessoas no mundo reage. As pilhas de comentários, em vários idiomas, se multiplicam. A desumanidade e insanidade vêm decoradas com birutices conspiratórias, teorias toscas e um desfile monstruoso do caráter mais vil e repugnante.

Passamos a vida vendo os judeus no Holocausto, as crianças famélicas da Etiópia e da Somália, a vala comum com os cadáveres de Srebrenica e os mortos-zumbis do Ebola, sempre jurando solidariedade infinita. Hoje, parte da humanidade se lixa para o morticínio que nos atinge.

Estamos mortos e nem nos demos conta disso.

O fabuloso Erico Verissimo, que retratou tão genuinamente os contrastes do caráter humano e a degradação moral de uma sociedade hipócrita e doente, que lhe rendeu até um interrogatório na polícia política de Vargas, certa vez escreveu que "o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença".

Difícil e constrangedor seria refutá-lo num momento como esse. Tomo a liberdade apenas de adicionar que o ódio tem, sim, nos dias presentes, um papel fundamental nessa distopia sufocante em que vivemos. Aliás, distopia, a palavra da moda (odeio vocábulos de ocasião), infelizmente é o conceito que melhor retrata essa paisagem mórbida.

O ódio é um insumo com muitas aplicações. E dele podem surgir as mais variadas manufaturas da mente humana, como a indiferença, o desprezo, a ignorância, o preconceito e o medo cego.

Fala-se de dinheiro como se a vida humana estivesse numa vitrine, ou num saco de sementes, a granel, numa feira de rua. Dividir a atenção e os esforços, colocando lado a lado a vida e o 'mercado', é uma vergonha ultrajante que teremos, os sobreviventes, que levar cravada na testa, a ferro e fogo.

A empatia foi enterrada antes mesmo dos defuntos do novo coronavírus.

Como ocorreu com Günter Grass, o galardoado Nobel de Literatura que passou a vida agoniado pela vergonha de ter sido membro da SS nazista, um segredo que só revelou quando era muito idoso (o que para muitos foi um sinal de covardia, ou até mesmo de que nunca se arrependeu), em algum momento precisaremos mostrar de que lado estávamos quando o vírus nos devastou.

Se ninguém nos cobrar, essa tarefa ainda assim será realizada.

A consciência é quem nos cobrará.


*Henrique Rodrigues é jornalista e professor de Literatura Brasileira

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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