Por Ibis Pereira*
Em meio à crise provocada pela covid-19, cujos desdobramentos, sobretudo em termos humanos, ainda estamos longe de compreender, o governo Bolsonaro sancionou um programa emergencial destinado a garantir renda básica aos trabalhadores informais atingidos em suas condições materiais de existência, pelo isolamento social necessário ao enfrentamento da pandemia. A medida ganhou até mesmo um apelido: coronavoucher. Expressões como essa, aparentemente inocentes, escondem uma censura sutil à iniciativa, considerada pelos ultraliberais um privilégio.
Afinal, para esses fiéis do deus mercado, o liberalismo extremado é mais do que uma teoria econômica: é uma forma de racionalidade, que naturaliza a concorrência no âmbito da vida. Nesse sentido, Pierre Dardot e Christian Laval, em A nova razão do mundo, falam na formação de “subjetividades contáveis e financeiras”. Trata-se da produção de indivíduos insensíveis à dimensão moral da política como a busca do bem comum. Quando, diante do aumento escandaloso de mortes provocadas por esse mal, Bolsonaro afirma que é preciso voltar ao trabalho, porque pessoas vão morrer um dia e a vida é assim mesmo, ele não está demonstrando preocupação com o futuro, mas inviabilizando o amanhã, na medida em que sepulta a simpatia como princípio civilizatório, para anunciar um novo fundamento: a economia acima de tudo e o mercado acima de todos.
Dentro dessa lógica impiedosa, quem não trabalha não pode ter acesso a parte da riqueza produzida, a não ser por uma espécie de favor. Iniciativas de solidariedade para com grupos sociais mais vulneráveis são vistas como atentatórias aos interesses dos outros segmentos, uma espécie de desequilíbrio, como se a solidariedade devesse ser varrida do mundo dos homens para dar lugar à guerra de todos contra todos. A esse respeito, a Constituição Federal é clara: a ordem econômica é meio para a existência humana digna. A economia não é um fim em si mesmo. O fato de não haver trabalho para todos não pode ser empecilho para uma vida com dignidade. Não se trata de caridade, mas de Justiça. Não é a competição generalizada, mas dignidade da pessoa humana, nos termos constitucionais, o princípio estruturante do nosso modo de viver em sociedade.
Essa mentalidade, que implicitamente naturaliza a barbárie como modo de vida, elegeu o atual governo. E sua eleição tem um propósito bem definido pelo projeto ultraliberal em curso: atualizar o papel do país nos circuitos de acumulação. E nesse projeto não há lugar para a fragilidade. Não há lugar, porém, até um vírus lançar na cara de todos a verdade da nossa pequenez, ao lembrar que não há indivíduo sem o outro e sociedade humana sem solidariedade.
Celso Furtado, aliás, cujo centenário de nascimento comemoramos este ano, costumava dizer que o Brasil jamais seria desenvolvido, enquanto não compreendesse o real significado da palavra desenvolvimento, ao seu ver diretamente relacionada à redução das desigualdades sociais, e, portanto, à melhoria substancial das condições de vida dos mais pobres. Apenas para se ter uma pálida ideia do nosso nível de incompreensão nesse tema, uma pesquisa recente acerca da desigualdade no mundo, coordenada pelo economista francês Thomas Piketti, apontou para o fato de que no Brasil 30% da renda está concentrada nas mãos de apenas 1% da população, o que faria de nós campeões de iniquidade, recordistas de indiferença humana.
Uma ignomínia. A concentração de renda entre nós esteve sempre a serviço de um único objetivo: aumentar o nível de consumo dos mais ricos. A exclusão no Brasil tem sido uma perspectiva. O país tem que dar lucro para os seus donos. Não pode dividir. Ocupamos desde sempre um lugar de inserção na ordem capitalista e por isso temos sido esse imenso moinho de gastar gente, como disse Darcy Ribeiro. De reserva patrimonial de metais preciosos e matérias-prima, a fase de produtores de bens primários, sempre fomos enquadrados dentro de um movimento de acumulação. A indiferença pelos que não conseguem se integrar, princípio da brutalidade, tem sido a marca do país fundado sobre a violência e a escravidão. Uma ferida ainda aberta por onde escorre esse ódio que pulula as redes sociais e intoxica a vida.
Se quisermos habitar um país decente, precisamos enraizar a parcela da população precarizada pelas condições impostas pelo modelo econômico, agravadas pela atual pandemia. A harmonia social é fruto de um sentimento de se estar em casa, onde reconhecemos os outros e somos por eles reconhecidos. Nunca seremos desenvolvidos, sequer um país, no sentido eloquente, se não enfrentarmos a desigualdade.
Programas que estabelecem transferências de renda, diante da realidade brasileira, não constituem um favor. Num país até aqui marcado pelo desenraizamento, essas iniciativas significam menos uma ajuda contra um sofrimento do tempo presente do que um compromisso ético com o futuro. Temos diante de nós a ocasião para o estabelecimento definitivo da fraternidade, como via de acesso para a configuração de uma nova humanidade.
*Ibis Pereira é coronel reformado da Polícia Militar e coordenador da mandata Renata Souza
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum