Por Tamires Gomes Sampaio*
Estamos na quarta semana de isolamento social e quarentena em São Paulo. Até aqui, são mais de 7.764 mil casos confirmados de coronavírus na cidade e quase 500 mortes. No mundo, já são mais de um milhão de casos e a pandemia está fazendo com que grandes potências mundiais voltem grande parte de seus esforços em investimento na saúde pública.
Mas não é só o investimento na área da saúde que está em pauta nos tempos de pandemia, a educação pública, a de nível superior, muito responsável pelas pesquisas científicas, a taxação de grandes fortunas e a renda básica de cidadania são exemplos de temas que tomaram o cenário político mundial nesse momento delicado, em que um vírus altamente contagioso faz nosso sistema econômico e nosso modo de vida entrarem em colapso.
Nesse sentido, em caráter emergencial, foi sancionada, no dia 02 de abril, a contragosto e após intensa pressão da oposição, lei que destina R$ 600,00 para aqueles trabalhadores informais, autônomos e sem renda fixa e R$ 1.200,00 para mulheres chefes de família.
Contudo, não há muito o que comemorar. Para além da medida chegar em um momento crítico, em que ela pode, quando muito, apenas conter os danos que o desigual tecido social brasileiro começa a sentir de forma mais dura com o agravamento da crise causada pela disseminação do vírus em nível mundial, há uma série de dificuldades a serem transpostas até que esse dinheiro chegue às família mais pobres do país.
Primeiro, houve um escandaloso atraso em repassar essa verba. Em parte, isso se deve a uma escolha política do Governo Bolsonaro, que irresponsavelmente flerta com o fim da política de isolamento social horizontal e, portanto, joga com a possibilidade de lançar esses trabalhadores à própria sorte em meio ao quadro de pandemia. De outra parte, há uma dificuldade administrativa, fruto do desmonte que as políticas sociais sofreram no último período em território nacional.
Medidas de inclusão social como a renda emergencial aprovada demandam do Estado um corpo burocrático para que elas cheguem à ponta da sociedade, onde justamente se encontram seus potenciais beneficiários.
O esvaziamento do Programa Bolsa Família nos últimos anos contribui sensivelmente para que seja difícil lograr com que a renda aprovada seja uma política vitoriosa de distribuição de renda nesse momento. Certamente o Cadastro Único dos Programas Sociais - CadÚnico é a principal ferramenta para a localização das pessoas que aferem baixa renda , mas não deve ser a única e o governo não dá mostras de que irá lançar mão da busca ativa, ferramenta fundamental em que o Estado assume a tarefa de localizar no território as famílias que se enquadram dentro do recorte do benefício, tornando a medida o mais ampla e efetiva possível.
Por fim, as demissões em massa dos servidores federais repercutem de forma sensível em um momento como esse, em que o governo brasileiro precisa fazer chegar essa renda básica a 25% da população brasileira. Nos municípios, com poucos servidores públicos nos CRAS (Centros de Referência da Assistência Social) e nos CREAS (Centros Especializados da Assistência Social) em um momento de emergência como esse, os municípios ficam de mãos atadas para orientar a população mais vulnerável - do ponto de vista da renda - sobre a política pública recém aprovada, e para atender aos demais casos nos quais a situação de risco social e de violência podem aumentar devido ao isolamento social necessário frente à pandemia.
O que fica escancarado é que o não investimento que assegure uma quantidade adequada de servidores públicos na área da assistência social, combinado a uma política de esvaziamento da oferta de serviços socioassistenciais torna muito difícil que uma simples medida como a renda emergencial de R$ 600,00 vire realidade para os milhões de brasileiros expostos ao desemprego em tempos como os que estamos vivendo atualmente.
O povo brasileiro está pagando caro, com sua saúde e sua vida, a escolha do atual governo por não priorizar a inclusão social!
Seguir sonhando! Construir a utopia de uma outra São Paulo e um outro Brasil
Tudo isso significa dizer que, considerando o avanço de políticas de austeridade fiscal e cortes em gastos sociais vistos nos últimos anos, a construção de uma nova sociedade, um novo meio de sociabilidade que não priorize a morte em detrimento da vida, nunca esteve tão em pauta no cenário mundial como agora.
Logo, o momento é oportuno para fazermos uma reflexão sobre que tipo de sociedade queremos viver e qual sistema econômico deve ser defendido para atender os interesses da sociedade que queremos. Nesse tempo de incerteza, de isolamento social e de morte é necessário resgatar nossas utopias e construir a sociedade que sonhamos a partir do nosso espaço mais imediato de convívio social, que é a nossa cidade.
São Paulo possui pouco mais de 12 milhões de habitantes e, de acordo com os dados do Ministério da Cidadania, mais de meio milhão de pessoas estão em situação de pobreza ou extrema pobreza. Temos quase 30 mil pessoas em situação de rua - dados da própria Prefeitura de São Paulo, que foram bastante contestados quando de seu lançamento. Ainda, São Paulo se encontra com 1,3 milhão de famílias registradas em seu Cadastro Único.
A cidade metrópole, o centro econômico do país, a São Paulo da diversidade é também uma cidade dos muros que criminalizam a pobreza e que produzem desigualdades, de raça, classe social e gênero.
A pobreza no Brasil, e em São Paulo não é diferente, tem cor, classe social e gênero, assim como as maiores vítimas da violência, seja ela de Estado ou doméstica. Isso significa que os direitos conquistados e previstos em nossa Constituição Federal não estão sendo garantidos para a maior parte da população, que é negra, mulher e vive nas periferias.
As políticas de inclusão social existem para garantir a proteção aos cidadãos fazendo com que eles tenham acesso aos serviços públicos de assistência social, transporte, educação, saúde, inclusão tecnológica, etc. Elas garantem a segurança e a defesa dos direitos que estão em risco ao não serem garantidas para toda a população e isso se escancara na situação de pandemia que estamos vivendo, pois, ao decretar quarentena e isolamento social como assegurar que todos os cidadãos tenham a mesma condição de fazê-la?
Vale destacar que a população pobre e periférica de nossa cidade poderia ter os efeitos da política de isolamento social e desemprego amortecidos, caso a municipalidade tivesse continuado a investir em programas como o Renda Mínima, que atualmente beneficia somente 12 mil famílias. É preciso voltar a fazer uma busca ativa do Cadastro Único da cidade, em especial com a população em situação de rua, para que tenhamos o mapeamento da cidade e da necessidade de ampliação das políticas de inclusão social para o combate às desigualdades como o Renda Mínima, o Bolsa Família e a Renda Emergencial aprovada pelo Congresso e sancionada pelo governo federal.
Mas, pensando além da renda emergencial, a conjuntura impõe questões que precisam de resposta urgente do Poder Público. Como a população em situação de rua lavará as mãos e conseguirá garantir a higienização diária recomendada? Como se isolar em uma casa de um cômodo com mais de seis pessoas morando juntas, entre avós, mães, filhos, netos? Como pagar as contas se a única renda da família vem através do bico que não poderá mais ser feito em razão da quarentena? Como alimentar as crianças e adolescentes que tinham sua refeição diária nas escolas públicas que foram fechadas?
A resposta para todas essas perguntas deve passar necessariamente por investimento do Estado e por políticas públicas de combate à desigualdade e inclusão social, que devem ser prioridade do governo não só em tempos de pandemia, mas sempre. Pois a estrutura social brasileira está marcada por violências e desigualdades que se consolidaram desde o período escravocrata.
O que o momento traz como importante reflexão é que a renda básica aprovada em caráter emergencial não pode servir como mero paliativo, como se o Estado estivesse fazendo caridade para as pessoas mais necessitadas.
É preciso ir além e afirmar que o exercício pleno da cidadania de qualquer brasileira e brasileiro passa pelo reconhecimento de que as pessoas são sujeitas de direitos e, portanto, o Estado não faz favor algum ao conceder uma renda mínima. Em contexto de pobreza, a renda mínima é um importante instrumento para garantir para além da sobrevivência, a possibilidade de que a população possa acessar outros equipamentos e serviços públicos. Assim é possível se locomover na cidade e ter acesso a uma Unidade Básica de Saúde, a uma escola, ao teatro, a uma festa, a um show, às opções de lazer que a cidade oferece.
Que a pandemia do COVID-19 seja uma oportunidade para repensarmos os rumos da vida humana e as prioridades políticas que orientam nossos governantes! É tempo de pensarmos qual modelo de vida queremos ter e construí-la durante e depois que superarmos essa pandemia.
*Tamires Gomes Sampaio é diretora do Instituto Lula, advogada, mestra em Direito Político e Econômico e militante da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN)
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum