Por Filipe Luiz dos Santos Rosa*
O que seria necessário o presidente fazer para que seus seguidores considerassem a mera possibilidade de que Jair Bolsonaro talvez, e somente talvez, estivesse errado uma única vez na vida?
É este questionamento que move as reflexões apresentadas a seguir.
Foi já durante o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro que fomos apresentados ao caos que se instalava na esfera federal: popularidade caindo até estacionar em 30%, ministérios batendo cabeça, dança das cadeiras entre ministros, perda de apoio no congresso. Tal momento político tem seu fim com a saída de Bolsonaro do partido onde se elegeu com a promessa (nunca concretizada) de criar seu próprio partido, a “Aliança pelo Brasil”.
Neste período foi outro evento que chamou a minha atenção: uma postagem tímida de um conhecido de muitos anos, neopentecostal fervoroso, onde este afirmava ver em Jair Bolsonaro um “enviado divino” cuja chegada estava profetizada em textos bíblicos, sendo prontamente apoiado por colegas de igreja (e pelo próprio presidente). Esta postagem me saltou aos olhos uma vez que eu já havia ouvido relatos de colegas (ex- membros destas igrejas, quando jovens) que agora viam a formação de uma “Teologia bolsonarista” entre seus familiares ainda ligados a igrejas neopentecostais, foi esta situação insólita que me acendeu uma luz de alerta.
Os eventos atuais me jogaram de volta neste raciocínio após o fatídico pronunciamento em cadeia nacional, onde o posicionamento do presidente se opunha inquestionavelmente a qualquer lampejo de sanidade, de forma que este seria racionalmente impossível de ser defendido por qualquer humano em pleno gozo de suas faculdades mentais, mas mesmo assim foi aplaudido pelo chamado “núcleo duro do bolsonarismo”. Como poderiam os bolsonaristas acreditar que todas as autoridades científicas e políticas do mundo, sem exceção, estariam conspirando para desgastar Jair Bolsonaro? Como é possível que um grupo considerável de pessoas insista em continuar defendendo uma proposta, quando até mesmo o ministro que a redigiu já havia afirmado que se tratava de um erro de redação ? A explicação é ainda mais preocupante que o próprio fenômeno em si.
Não é novidade para ninguém que o bolsonarismo é radical em sua essência, porém o que temos visto nas redes sociais e nas “carretas da morte”, já não é mais um radicalismo político como já nos acostumado a considerar-lo, nós estamos diante de uma nova manifestação de radicalismo: um radicalismo essencialmente religioso. Para o chamado “núcleo duro” do bolsonarismo, Jair Messias Bolsonaro já não é mais um líder político, mas sim uma figura divina e infalível, líder inquestionável de uma seita messiânica.
Esta condição onde um povo que, a se ver órfão de sua liderança paternal, se volta à divinização de um ídolo fabricado sob medida para atender seus desejos é bastante antiga, tendo sido retratada de forma exemplar na passagem bíblica de Êxodos 32 quando o irmão mais velho de Moisés, Aarão, para conter a insatisfação popular devido à ausência de seu profeta, cria um bezerro de ouro para servir de objeto de culto para seu povo desolado.
Mas quem são os idólatras do bezerro de ouro, do “Messias” Bolsonaro?
Embora este seja um grupo com razoável diversidade no tocante às crenças, sendo composto por um número razoável de católicos carismáticos e outra parcela de pessoas não vinculadas formalmente a nenhuma vertente religiosa, me parece consenso que o núcleo duro do bolsonarismo é formado majoritariamente por neopentecostais (este artigo apresenta bons dados a respeito), fato corroborado pelo apoio irrestrito que o presidente ainda hoje encontra nos principais representantes da bancada evangélica.
A próxima questão lógica seria: Mas como podem os que se intitulam evangélicos praticarem tão descarada idolatria, justamente a acusação que estes seguimentos reiteradamente usam para criticar o catolicismo?
Esta é uma questão um pouco mais longa para responder, mas resumidamente podemos lembrar que o neopentecostalismo é visto com ressalvas pelas vertentes protestantes mais tradicionais, o protestantismo histórico nasce, entre outras coisas, como uma reação de certos sacerdotes às práticas supersticiosas e formas de misticismo presentes na sociedade européia do fim da idade média, que iam desde o culto a imagens e relíquias sacras até a venda de terrenos no céu, fragmentos de madeira da cruz, espinhos da coroa de cristo e similares. Tais práticas hoje já não são mais toleradas pelo catolicismo, entretanto, com exceção das imagens sacras, podem ser facilmente encontradas nas principais igrejas neopentecostais do país.
Outro ponto fundamental a ser observado neste “neopentecostalismo bolsonarista” é a sua gritante desconexão com o próprio evangelho em si, apesar de terem o nome de Jesus em seus slogans e a usarem amplamente sua figura como garoto propaganda, os pensamentos cotidianos destes seguimentos são fundamentados exclusivamente em passagens do velho testamento, enquanto os valores centrais do cristianismo são ignorados e o evangelho acaba sendo lembrado apenas como um acessório, uma fonte frases selecionadas meramente para fornecer conforto espiritual, sem nenhum aprofundamento real. Assim sendo me arrisco a dizer que “neopentecostalismo bolsonarista” está muito mais próximo de uma seita mística judaica do que de uma vertente cristã propriamente dita, outra evidência que corrobora com esta afirmação é a defesa irrestrita e inquestionável que tais grupos fazem ao atual estado de Israel, usando como argumento interpretações literais de passagens do velho testamento que colocam Israel como “a nação escolhida”.
O ponto culminante de todos estes questionamentos é termos a clareza de que as vertentes neopentecostais que se amalgamaram ao bolsonarismo se intitulam “cristãs e evangélicas” por mera conjunção de conveniências, na prática não são cristãs e tão pouco evangélicas, uma vez que a mensagem cristã expressa nos evangelhos é completamente ignorada em favor de um radicalismo pautado em interpretações fundamentalistas do velho testamento judaico.
Em termos históricos todo este contexto não é inédito e guarda muitas semelhanças com que ocorreu na Alemanha dos anos 1930, por mais clichê que possa parecer toda comparação de eventos atuais com o nazismo, quando Hitler inicialmente ascendeu ao poder bajulando ora protestantes, ora católicos, conforme o oportunismo da situação, mas ao se consolidar como o centro de um culto personalista não teve pudores em transmutar sua própria figura, de um líder político forte e impulsivo em uma figura messiânica e sabedora de todas as verdades. Isto fica evidente quando observamos a proposta do chamado “cristianismo positivo”, encabeçado pelo movimento Deutsche Christen durante a ascensão nazista que se transformou rapidamente em uma seita messiânica, onde seus membros idolatravam a figura divinizada de Hitler, criando uma mistura de cristianismo distorcido com elementos estéticos de paganismo germânico destinada a se transformar na futura Reichskirche (igreja do reich).
Este contexto, onde já não existe conexão racional entre o que se pensa crer e o que se crê de fato, é um terreno fértil para o surgimento de um culto messiânico baseado na idolatria de um personagem artificial, fabricado por forças maiores que o próprio presidente para atender os desejos de submissão de seus fiéis, é o cenário ideal para a criação de um bezerro de ouro, como o de Aarão.
*Filipe Luiz dos Santos Rosa é professor de Geografia e especialista em História Militar
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum