A última tacada, por Flávio de Castro

Quem ligasse a TV num domingo poderia se admirar um sujeito compenetrado que vencia cirurgicamente cada um de seus adversários - era Rui Chapéu, jogador de sinuca profissional, que faleceu nesta semana com 68 anos de sinuca

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Por Flávio de Castro*

E veio o apocalipse e a gente dentro dele. Haja velório, pelamor. Alguém me disse que os bons estão morrendo e o Brasil junto com eles. Não consigo discordar. Em outubro do ano passado subiu (com 90 anos) o famigerado Walfrido Rodrigues dos Santos – o Carne Frita, imortalizado e consagrado nos contos e epígrafes do escritor brasileiro João Antonio. E eis que agora recebo a notícia que Rui Chapéu apitou. Talvez algum leitor ou leitora do século passado se lembre de ter visto, entre os anos 80 e 90, aquela figura que jogava bilhar na TV aberta, em rede nacional. Sempre de boina, compenetrado, infalível, mostrou para os espectadores desavisados sua absoluta e indiscutível competência nas mesas de bilhar.

Na ocasião da morte de Carne Frita, o próprio Rui Chapéu declarou que o Brasil perdia o maior taco de todos os tempos. Taco, na linguagem do joguinho, é quem joga o fino do jogo, com picardia e elegância. O elogio – ou constatação - reverberou pelas seis caçapas deste país, visto que Chapéu foi o taco mais conhecido do Brasil, afinal, sua fama e habilidade saíram dos salões imundos e insones e encaçapou os lares brasileiros que sintonizavam sua picardia no programa “Show do Esporte” da TV Bandeirantes. Quem ligasse a TV num domingo poderia se admirar em ver um sujeito compenetrado que vencia cirurgicamente cada um de seus adversários, ou melhor – roía cada um pelas pernas, estraçalhava, barbarizava.

Um monte de gente como eu achava que sabia o que era o joguinho, achava que era ou que conhecia improváveis tacos em seu bairro ou cidade. Pois quando aquele sujeito esguio aparecia num silêncio que os narradores cobriam de pleonasmo e começava a encaçapar, defender, esnucar (nesse momento o meu corretor de texto traça uma linha inútul sobre um verbo que aurélio nenhum conhece) o Brasil da TV aberta aplaudia de boca aberta e reconhecia o que era um taco, um cobra, um pedra 90 do joguinho.

Eu tinha dez ou doze anos. Nunca entendi se era uma exibição circense ou se era um esporte. Afinal de contas, por que aquele jogo que se jogava nos bares de todas as esquinas foi aparecer na TV? O bilhar era coisa de malandro, era a arte da viração. E isso mudou, indiscutivelmente, por causa dele, José Rui de Matos Amorim, o jogador da boina branca.

É dificil escrever sobre ele sem plagiar João Antonio. Quem joga, joga, quem não, aplaude. Por isso me sinto à vontade de evocar humildemente o escritor que percebeu e consagrou a relevância do bilhar – metáfora perfeita da viração, do desacato, da encabulação. Tacos como Carne Frita, Lincoln, Praça e Rui Chapéu, nas palavras do escritor, cortavam rente, ou seja, definiam as partidas com eficiência e precisão. Não havia disputa possível, não havia erro, vacilo, desajuste. Ninguém ganhava destes consagrados tacos. Aos dez ou doze anos de idade eu e tantos outros brasileiros vimos na TV aberta um sujeito esguio e sisudo fazendo o que queria com as bolas sobre o pano verde.

Carne Frita, Praça, Lincoln, Rui Chapéu não disputavam capeonatos, pois não havia premiação. Eles jogavam pelo dinheiro da aposta, caso contrário não haveria motivo para tanta técnica, habilidade e precisão. O que estava em jogo era a própria vida, a honra, o sustento. Coisas que medalhas e troféus não sabem ou não podem representar. Aliás por onde andará os outros tacos que mencionei? Será que estão vivos, pulando de salão em salão, desafiando falsos tacos, papagaios enfeitados e verbosos, nos saguões de hotéis repletos de otários endinheirados que frequentam feiras agropecuárias ou mesmo biroscas apinhadas de pobres trabalhadores assalariados resolvem apostar – e invariavelmente perder – todo o salário do mês em uma série de partidas que podem durar uma noite e dia inteiros. Sem dinheiro não dá barato, sem dinheiro não vira, sem dinheiro é coisa de estudante, é leite de pato.

Pois a vida segue dolorida como uma bola branca que cai, dizia João Antonio. E como se não bastasse a necessidade, um princípio rege a vida dos maiores tacos deste país: afinal de contas, pra que otário precisa de dinheiro?

Eu não sei jogar absolutamente nada de bilhar, li e reli Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) e Meninão do Caixote (1983), as pioneiras e grandes narrativas da arte do joguinho na nossa literatura. Não sei encaçapar ou esnucar (de novo o corretor ortográfico vacilão), mas fui menino diante da televisão, girando as bolas dos meus olhos nas tacadas magistrais do homem da boina branca e me pergunto, será o fim da rapaziada? Será que a elegância, a picardia, a pontaria e a eficiência dos maiores jogadores da história de esporte morrem juntas com os maiores tacos do Brasil? Tenho medo de acreditar, aliás, me recuso a acreditar que o século XX acabou.

É fácil dizer que as lendas não morrem. Dificil é fazê-las viver. Por isso vejo e revejo no Youtube as jogadas do Baianinho de Mauá, também conhecido como o Bruxo, o Humilde. Radicado em Ribeirão Preto, terra onde reinava o lendário Praça (um dos maiores rivais do mestre Carne Frita), o baiano de de 46 anos cobra R$ 3.000,00 por apresentação e se declara imbatível na TV e nas redes sociais. Duvidou? É só tentar a sorte, arrumar o dinheiro da estia, pagar a curriola e ir – Ribeirão é logo ali, tem ônibus saindo de São Paulo a cada hora. Quem sabe você não pega a mão? Quem sabe não vira o jogo? Ou então o melhor mesmo é ficar em casa com o dinheirinho seguro no bolso, se juntando às milhões de visualizações das jogadas do baiano na internet.

Carne Frita, Rui Chapéu, os maiores tacos desta terra, infelizmente se foram. Uma hora acaba, uma hora amanhece e a mesa fica vazia. Mas a cada matada de bola estralada, a cada domínio da volta da branca ou a cada saída de uma sinuca aparentemente inexpugnável o nome deles há de ser invocados. Isto é certo como dois e dois são, pode apostar. Pois uma coisa é certa nesta vida: o joguinho é jogado, parceirinho.

*Flávio de Castro é professor de literatura e escritor