Por William Nozaki*
A doutrina militar, historicamente, estabeleceu os objetivos da industrialização brasileira: integração, defesa e segurança, mais do que desenvolvimento, emprego e renda, como imaginavam os civis. As malhas ferroviária e rodoviária garantiriam as condições logísticas para a integração, as indústrias metalúrgica e siderúrgica garantiriam os suprimentos essenciais para a defesa, as indústrias de petróleo e petroquímica garantiriam o abastecimento necessário para a segurança. Não se tratava de um industrialismo baseado em nacionalismo e protecionismo, mas sim em pragmatismo e funcionalidade temperados, é bem verdade, com um certo dualismo na visão sobre a geopolítica e um certo elitismo na visão sobre o povo brasileiro. Exatamente por isso, em todas as ocasiões em que ocuparam o Estado, os militares estabeleceram estreita proximidade com o sistema de empresas estatais. Com outros objetivos, tal aproximação se repete atualmente. Sendo assim, vejamos como tem se dado a presença dos militares no sistema produtivo estatal, particularmente em alguns projetos com interface na área de defesa.
Os militares e a indústria naval estão em diálogo. O sinal vem justamente do novo projeto Cluster Tecnológico Naval, uma articulação entre Estado e empresariado contando com a participação dos Ministérios da Defesa e da Marinha, do BNDES, das autoridades portuárias, do Fundo da Marinha Mercante (FMM), além da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN), Instituto Brasileiro do Petróleo (IBP), Sindicato Nacional da Indústria de Construção Naval (Sinaval), universidades e Sebrae. O objetivo: ensaiar uma política industrial para o readensamento das cadeias produtivas ligadas à construção e reparação naval (militar e mercante). Os proponentes: empresas estatais vinculadas às áreas do governo com presença de militares, Emgepron, Amazul, Nuclep e Condor Tecnologias Não-Letais.
As empresas estatais ligadas a setores ou figuras militares tem sido fortalecidas, ao contrário do que acontece com as demais. A Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), vinculada à Defesa e à Marinha, teve seu capital aumentado em R$ 7,6 bilhões, já a Infraero Aeroportos, dirigida por um Tenente-Brigadeiro recebeu um aporte de R$ 1,5 bilhão, enquanto a Telebras, subordinada à pasta do militar-astronauta, recebeu cerca de R$ 1 bilhão. No caso da Infraero o aporte do Tesouro respondeu a exigências contratuais de contrapartidas de concessões passadas, no caso da Telebras o aporte foi para pagar despesas básicas, tratam-se, portanto, de medidas pré-privatização. Mas no caso da Emgepron há projetos com potencialidade estratégica e mobilizadora de investimentos industriais. Num e noutro caso, com ou sem projeto de desenvolvimento, fato é que os militares estão sentados em instituições com potencial efeito positivo sobre as taxas de investimento e lucro.
Em alguns casos, a propósito, há até mesmo reminiscências da clássica articulação entre capital estatal, capital privado internacional e capital privado nacional, um exemplo está na reafirmação recente das parcerias e contratos entre a Nuclebrás Equipamentos Pesados (Nuclep), ThyssenKrupp Marine Systems e LOGSUB Soluções Logísticas. Além disso, está em análise na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), um projeto que amplia o escopo de atuação da Emgepron permitindo que ela coordene a execução de projetos estratégicos não apenas da Marinha, mas também do Exército e da Aeronáutica; vale registrar, por fazer parte do complexo industrial de defesa, a Emgepron pode dispor de regimes específicos de licitação, alguns deles já tem sido utilizados para a contratação de empresas nacionais, numa espécie de política silenciosa de conteúdo local. Novamente, com ou sem direção e coordenação, fato é que os militares estão com as mãos em alavancas que podem reativar algum nível de política industrial e tecnológica.
Mesmo no caso mais problemático de manifestação de falta de nacionalismo dos militares, a venda da Embraer para a Boeing, o desfecho da negociação impõe ponderações, pois, a joint venture deixou a Boeing com o controle de 80% da Embraer na área de aviação comercial, mas manteve a Embraer na área de defesa e segurança a uma distância relativa desse acordo. O ocorrido não diminui os riscos à soberania e não veda a transferência indevida de tecnologia nacional com todos os seus efeitos colaterais, mas mostra que, à sua moda, os militares estão utilizando os seus assentos e alavancas. Não necessariamente por meio de um comando ou de uma estratégia, mas mais por instinto de estamento e ocupação de espaço, são os militares os atores posicionados sobre alguns dos principais instrumentos de política industrial, investimento e reativação do crescimento econômico.
Não se trata com isso de alimentar ilusões sobre um eventual nacionalismo ou industrialismo das Forças Armadas. Na estratégia de defesa dos militares a Amazônia Verde e o Atlântico Sul são fronteiras decisivas, é bem verdade. Mas, como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), na visão da maioria dos militares, passa pelo alinhamento automático com a potência hegemônica e pela composição com as oligarquias locais, as nossas fardas não se constrangem em se associar ao projeto neoliberal de desmonte do Estado e abertura desregrada do mercado, nem tampouco com o projeto neoconservador de degradação ambiental com predação agrária, minerária e energética, pois, nesse caso, proteger a floresta e o mar significa, antes de mais nada, protege-los dentro dos marcos do direito privado e do capital externo e não das noções de bem público.
No entanto, a pauta dos casos jurídicos, policiais e criminais envolvendo o clã Bolsonaro não param de se avolumar, isso cria constrangimentos e tensões entre os lavajatistas e cada vez mais coloca Sérgio Moro em descrédito. O governo reage subindo o tom de suas declarações disparatadas e desqualificadas, à moda de olavistas. A grande imprensa, em posição ambígua e recuada, reage contra a falta de decoro e educação do ocupante do Planalto e a pauta da “falta de bons costumes”, acrescida de suspeitas de relações com milícias e corrupção, perturba a agenda econômica no Congresso, fazendo com que o mercado diminua suas expectativas sobre a capacidade de Paulo Guedes entregar as reformas administrativa e tributária. Enquanto isso, o governo sofre ataques do PSL e de ex-aliados na CPI das fake news. Como, além de tudo, estamos em ano eleitoral, nem Maia e nem Alcolumbre estão dispostos a servir de anteparo para as sandices e irresponsabilidades do governo Bolsonaro. Enquanto isso, no campo progressista, apesar de uma série de reveses, o fato mais relevante é a crescente mobilização dos petroleiros em uma greve contra demissões e falta de diálogo com a maior empresa brasileira.
Os militares, em certo sentido fiadores desse governo, certamente não estão desatentos a esse cenário e se precisarem agir, agirão, nem de longe à moda de ditaduras e tomadas do poder como no passado, mas se valendo das próprias brechas da democracia e pela ocupação do governo. Se a reabilitação e a militarização da Secretaria de Assuntos Estratégicos, agora com poderes sobre a agenda internacional do Planalto, pode significar mais um controle sobre a política externa de Ernesto Araújo, cabe considerar a hipótese de a política econômica de Paulo Guedes também não estar a salvo dos olhares dos militares, que, não por nacionalismo ou industrialismo, mas por pragmatismo e funcionalidade, podem operar ligeira mudança na condução econômica em breve, partindo, hoje como ontem, de suas interconexões com os setores de defesa e armas, energia e petróleo, infraestrutura e logística. A ver.
*William Nozaki é professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), diretor do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP)