Por Estevan Mazzuia *
Não sei ao certo como começou minha paixão pelo carnaval. Lembro que minha família, de forma geral, gostava de assistir aos desfiles pela TV. Minha avó era bem foliã. Minha mãe, nem tanto, mas sempre comprava confete e serpentina, uma fantasia, e uma “bisnaga” d’água para mim. E lá ia o pequeno Superman, molhando desavisados pelos jardins da orla de Santos.
Com apenas nove anos, depois de muita negociação, em 1.987 consegui autorização para acompanhar os desfiles pela TV, noite adentro. Todos foram dormir e lá fiquei eu, fascinado com a autonomia recém-conquistada. Meu avô, um homem sisudo, surpreendentemente topou fazer-me companhia. Contra todas as aparências, ele era de pegar uma almofadinha e ir para as arquibancadas montadas na avenida da praia. Eu, até então, desconhecia esse lado dele. A tentativa de conseguir assistir a todas as escolas fracassou. Sucumbi aos chamados de Morfeu e não cheguei a ver, pela primeira vez na vida, o nascer do sol.
O carnaval de 1.988 se aproximava e um novo passo era dado em minha preparação: a compra do LP dos sambas de enredo! Em 1.967 a Mangueira apresentou “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato” e o samba fez um estrondoso sucesso. A partir de 1.968, na onda desse sucesso, os sambas de enredo passaram a ser gravados em estúdio e os discos tornaram-se presentes natalinos recorrentes entre sambistas.
Já havia CDs, mas ainda era uma tecnologia inacessível para nossos bolsos. Quem ligava? O que eu queria mesmo era colocar aquela bolacha preta pra rodar na vitrola da casa de minha avó, em São Paulo.
O primeiro samba-enredo que ouvi (ou, ao menos, que eu tenha certeza de tê-lo feito) antes de um desfile foi o do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Tijuca, para o carnaval de 1.988. Quem acompanha o carnaval mais de perto associará a escola ao carnavalesco Paulo Barros, que assinou os desfiles de 2010, 2012 e 2014, que deram títulos que a escola não via desde 1.936. Em 1.988, todavia, a escola abriria os desfiles do grupo especial, tendo sido campeã do grupo de acesso em 1.987. Os tempos eram difíceis. A amarelo-ouro e azul-pavão do Morro do Borel passou os anos 60 e 70 no segundo grupo e, nos 80, oscilava entre o segundo e o primeiro. 1.988 seria uma virada de página nessa história.
Fernando Horta assumira a presidência da agremiação, montando uma equipe de respeito, com Xangô da Mangueira responsável pela harmonia, Mestre Marçal pela bateria e ex-integrantes da Imperatriz Leopoldinense na comissão de frente. Artistas como Miguel Falabella, Edson Celulari, Marcos Frota, Paulo César Grande, Diogo Vilela e Natália do Vale, além dos já falecidos Caíque Ferreira, Lauro Corona, Carlos Augusto Strazzer e Roberto Leal prestigiaram o desfile, com o qual a escola conseguiu se manter no grupo principal (o rebaixamento previsto acabou não ocorrendo, mas não atingiria a escola tijucana).
Com o enredo “Templo do Absurdo – Bar Brasil”, desenvolvido por Sylvio Cunha, a escola levava à avenida os assuntos que eram calorosamente discutidos nas mesas de bar, entre umas e outras com os amigos. Berços de grandes resoluções, os botecos seriam verdadeiros “templos do absurdo”, abrindo espaços para uma ampla gama de temas a serem discutidos: a má remuneração salarial, as broncas do patrão, os privilégios de uma minoria brasileira, a inflação, os sucessivos e infrutíferos planos econômicos, a insegurança, as brigas familiares, as derrotas do time do coração... Tudo aquilo que seria justo motivo pra correr ao boteco mais próximo e se embriagar, enquanto se desabafa com os amigos, em situações semelhantes. As “principais decisões” no Brasil eram feitas de copo na mão. E ainda seriam, não fosse a pandemia...
A comparação com o Brasil de hoje é inevitável. A atualidade dos problemas relevantes em 1.988 “impreciona” e decepciona. Hoje, com as redes sociais, o Brasil virou um grande Templo do Absurdo, no qual discussões medievais são retomadas com veemência. A superficialidade das discussões, contudo, não é mais apenas um pretexto para encher a cara. Há pessoas dispostas a matar para impor sua crença de que a terra é plana, de que vacinas matam e de que o Brasil seria vítima de uma conspiração comunista encabeçada por Joe Biden, entre outros absurdos.
Então, já que essa é a última coluna do ano, vamos revisitar aquele desfile tijucano, fazendo uma breve retrospectiva de 2020, elencando os assuntos merecedores de uma bela resenha barística:
Em janeiro, tivemos o secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, tirando onda de nazistinha e o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, reconhecendo "inconsistências na contabilização e correção" da segunda prova do Exame Nacional do Ensino Médio aplicado em 2019, o “melhor ENEM de todos os tempos”, segundo o próprio.
Em fevereiro, o impasse na repatriação de brasileiros ilhados na China, por conta da Covid-19, a tentativa de Bolsonaro, o parvo, de regulamentar o garimpo em terras indígenas, a nomeação de Mourão para o Conselho da Amazônia e de um militar, Braga Netto, para a Casa Civil.
Em março, Bolsonaro trouxe o coronavírus para o Brasil, por meio de uma comitiva com mais de 20 infectados. Salientou que não havia motivo para pânico, que era apenas uma “gripezinha” e começou seu embate com João Doria, o engomado. Paralelamente, participou de manifestações que clamavam pelo fechamento do STF e do Congresso e viu fracassada sua tentativa de golpe.
Em abril, nomeou Regina Duarte, a tresloucada do peido de palhaço, para a Secretaria de Cultura, comemorou como vitória particular a derrota imposta pelo Congresso, que estabeleceu o valor de R$ 600,00 para o auxílio emergencial, exibiu o fino de seu vocabulário em uma reunião ministerial (que mais parecia uma boa resenha de bar) na qual seus antiministros da Educação e do Meio Ambiente não mostraram o menor pudor diante das câmeras e demitiu Henrique Mandetta da Saúde, por excesso de competência na condução da pasta.
Ainda encontrou tempo pra manifestar sua preocupação com os 2,5 mil mortos à época (“não sou coveiro”, “e daí?”) e assinar a demissão de Sérgio Moro, depois de insistir em colocar um amigo no comando da Policia Federal no Rio de Janeiro, para poder ser melhor informado sobre as investigações dos esquemas de desvio de verba pública seu rebento 01, o senador Flávio Bolsonaro.
Em maio, o desprezidente afirmou ter acabado sua paciência: havia chegado ao limite de sua tolerância com interferências em seu desgoverno. Aproximou-se do PP de Maluf, um partido “acima de qualquer suspeita”, assinou a demissão do inerte Nelson Teich do Ministério da Saúde, nomeando, provisoriamente, Eduardo Pazuello para seu lugar, um “gênio da raça” em termos de logística.
Em junho, diante de 30 mil mortos por Covid-19, alegou que a morte é o destino de todos nós. Recriou o Ministério das Comunicações, burlou o ordenamento legal para que Abraham Weintraub pudesse entrar nos EUA com passaporte diplomático e “amoleceu” seu discurso com a prisão do amigo miliciano Fabrício Queiroz. Para o lugar de Weintraub, nomeou Carlos Alberto Decotelli, que nem chegou a tomar posse, em virtude das inconsistências curriculares divulgadas. Milton Ribeiro assumiu oposto, defendendo a utilização de violência física como técnica de alfabetização.
Em julho, assistiu passivamente às queimadas no Pantanal e Amazônia reduzirem a pó as chances de o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia sair do papel. Infectou-se com o coronavírus, tomou uma bicada de uma ema no quintal do Palácio da Alvorada, tomou cloroquina, aplaudiu o dossiê sobre “antifascistas”, elaborado por seu novo antiministro da Justiça, tomou cloroquina, assistiu seu Posto Ipiranga, Paulo “Thuthuca” Guedes, entregar ao Congresso um pseudoprojeto de pseudorreforma tributária, tomou mais cloroquina (ou fingiu tomar, sabe-se lá).
Em agosto, disse que é preciso “tocar a vida”, montado sobre 100 mil cadáveres. Ameaçou “cobrir um jornalista de porrada” e viu sua popularidade manter-se no auge, enquanto a ministra de Jesus na Goiabeira fazia condenações públicas a uma menina de 10 anos que realizara um aborto após ser estuprada pelo tio.
Em setembro, prorrogou o auxílio-emergencial, efetivou Pazuello no antiministério da Saúde e culpou índios e ONGs pelas queimadas e pela destruição ambiental, discursando na Assembleia-Geral da ONU.
Em outubro, nomeou Kássio “passa-pano” Marques para a vaga do STF, aberta com a aposentadoria de Celso de Mello. Afirmou, sobre 150 mil vidas perdidas, que o problema da pandemia fora superdimensionado e assistiu Tereza Cristina, sua antiministra da Agricultura, afirmar que se o Pantanal e a Amazônia fossem um pasto, não teria ocorrido o problema das queimadas. Enquanto isso, dois meses antes de recomendar que pessoas negras raspassem os cabelos, Sérgio Camargo, o antipresidente da Fundação Palmares, excluía Gilberto Gil e Elza Soares, entre outros, do rol de homenageados pelo órgão.
Bolsonaro ainda encontrou tempo para humilhar Pazuello publicamente, desrespeitando, inclusive, a convalescência do submisso general. Fez piadinha homofóbica com maranhenses, revogou, diante da péssima repercussão, a tentativa de privatização das Unidades Básicas de Saúde e engoliu a derrubada, pela Justiça, de resoluções do CONAMA que visavam a promoção de mais destruição ambiental, atacando restingas e manguezais.
Em novembro, comemorou o suicídio de um voluntário nos testes da CoronaVac, viu (mas não aceitou) Trump, seu grande amor, ser derrotado nas eleições norte-americanas (avisou Joe Biden que temos muita pólvora, caso ele não queira aceitar nossas condições), chamou de “maricas” quem se previne contra o coronavírus, pediu votos para 62 candidatos, usando espaço público para fazê-lo, vendo 47 serem derrotados nas eleições municipais.
Enquanto João Alberto Freitas era assassinado por seguranças do Carrefour em Porto Alegre, afirmou que o Brasil importava tensões raciais “alheias” à nossa história. Seu vice, Hamilton Mourão, aproveitou o episódio para afirmar que não existe racismo no Brasil.
O ano ainda não acabou, mas o “esse lentíssimo” “dezpresidente” segue alimentando, diariamente, o cardápio para o Templo do Absurdo – Bar Brasil, versão 2020. Na véspera do Natal, retomou os ataques às instituições democráticas e segue surfando sobre a inércia da sociedade civil e das instituições atacadas. O jeito é encher a cara e emendar os versos compostos por Beto do Pandeiro, Carlos do Pagode, Ivar Silva, Monteiro, Nego e Vaguinho, para o desfile lembrado por esta coluna:
“Não dá pra segurar, já chega de sofrer
Quero poder ‘bebemorar’”
Aos que sobreviverem a esse restinho de 2020, meus votos de paciência e serenidade, para encarar um 2021 que não deve ser muito melhor.
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.