Sujeito de Sorte virou hino de uma geração, por Kerison Lopes

Como estamos a poucos dias da virada, não existe verso mais apropriado para terminar o catastrófico 2020 no Brasil. "Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro"

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Por Kerison Lopes *

“Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. O Theatro Municipal de São Paulo lotado entoa uníssono o verso que virou símbolo de uma geração. Era show do Emicida, que lançava seu novo trabalho: Amarelo. Transformado em documentário do Netflix, a emocionante cena está correndo o mundo.

Emicida poderia ter um verso seu como destaque daquela noite. Mas foi o trecho da música de Belchior que ecoou naquele coro de fãs. Talvez porque Sujeito de Sorte deixou de ser música e passou a ser hino. Antes de chegar naquele palco, ela tem sido cantada aos milhões Brasil afora.

Emicida foi contagiado pela onda da música e fez um sampler sobre a letra de Belchior. Mas eis que o cearense já tinha sampleado aquele verso de Zé Limeira, um violeiro negro e analfabeto que nasceu e viveu até 1954 em Teixeira, na Paraíba. Numa de suas obras, Zé Limeira, que ficou conhecido como Poeta do Absurdo, recitou:

Eu cantei lá no Recife

perto do Pronto Socorro:

ganhei duzentos mil-réis

comprei duzentos cachorro;

ano passado eu morri

mas esse ano eu não morro.

Aquelas palavras escritas no início do século passado foram incorporadas na letra de Sujeito de Sorte, no disco Alucinação de 1976. Agora, foi parar em Amarelo, onde Emicida as mistura com seus versos ao lado das cantoras Majur e Pablo Vittar. E o sucesso atual mostra que a frase foi escrita para os nossos dias.

A frase virou símbolo de uma forma de resistência, beirando resiliência. Passou a ser esculpida em tatuagens, camisetas, souvenirs, virou nome de bloco carnavalesco. O verso que virou grito ajudou a tornar Sujeito de Sorte um hino da nova geração. “As pessoas reconheceram nas palavras um tipo de urgência, uma exaltação à reação, à resistência”, me diz o jornalista Jotabê Medeiros, biógrafo de Belchior.

“As canções têm esse mistério. Por que ‘Pra não dizer que não falei das flores’, do Geraldo Vandré, foi um símbolo? Porque as pessoas quiseram que aquelas palavras representassem o que elas estavam sentindo. Acredito que Sujeito de Sorte tenha esse mesmo apelo”.

Apagada durante sua vida, a música virou hit depois da morte de Belchior. Aliás, arrisco-me a datar a sua redescoberta. Quando em 2016 criamos o Bloco Volta Belchior, ela nem estava entre as principais do repertório. Mas aos poucos foi crescendo, sendo pedida e hoje é a mais festejada. Esse tempo coincide com o período em que o Brasil entrou em decadência política, passando pelo golpe até chegar na fase sob o genocídio de Bolsonaro. Portanto, desde 2016 sonhamos em ter um ano melhor que o que se passou.

Para Jotabê, a música traz a mensagem de “decretar que esse ano você vai vencer. Que tudo que aconteceu de ruim ficou para trás. Ao mesmo tempo que ela é otimista, ela é realista em relação à brasilidade.”

Como estamos a poucos dias da virada, não existe verso mais apropriado para terminar o catastrófico 2020 no Brasil. Gritemos: Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.

*Kerison Lopes ex-presidente da UBES e do Sindicato dos Jornalistas e fundador do Volta Belchior.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.