Por Estevan Mazzuia*
“Eu quero ver Cuba lançar! (obá, obá)
Êta rabo de foguete!
Camarada Gorbatchov
Em Paris ou em Argel
Tempo ruim é quando chove”
Compostos por Uéber (quando ainda era comum um único autor de samba-enredo), os versos de gosto duvidoso que abrem essa coluna entraram para a história dos “sambas-trash” que sempre serão lembrados nas reuniões dos viciados em carnaval, como eu. O trecho do enredo da Unidos de Lucas, que falava sobre o exílio de Oscar Niemeyer, descambou para um dos mais infames trocadilhos carnavalescos, na leitura do poeta.
Era o primeiro carnaval após as eleições presidenciais de 1989, as primeiras desde 1960. Os brasileiros aguardavam, esperançosos, a posse de Fernando Collor de Mello, em 15 de março, logo após o carnaval. O Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Lucas seria a quinta escola a desfilar pelo grupo A (equivalente à segunda divisão), de um total de dez, no sábado de carnaval, 24 de fevereiro, com o enredo “O Magnífico Niemeyer”, desenvolvido por Luiz Orlando Baptista e José Leal.
Batizada por Elizete Cardoso e Herminio Belo de Carvalho, a agremiação da Zona da Leopoldina foi fundada em 1966, produto da fusão entre duas boas escolas à época, a Aprendizes de Lucas (uma das pioneiras a levar travestis para a avenida) e a Unidos da Capela (campeã do carnaval em 1950 e 1960, conhecida por ter a melhor bateria da cidade nos anos 40/50). Um caso raro e curioso, em que o resultado da soma foi menor do que as parcelas da adição. A entidade, que optou pelo nome Unidos de Lucas, em detrimento do “Aprendizes da Capela” (muuuuuito mais interessante), acabou rebaixada em 1969, voltando ao grupo especial em 1972 e 1975/76. Desde então, o mais próximo que chegou do grupo principal foi com os terceiros lugares no grupo de acesso em 1981 e nos anos de 1987/89.
Portanto, havia uma boa expectativa para o carnaval de 1990, depois de três “bolas na trave” seguidas (as duas primeiras eram promovidas, na época). Todavia, o desfile foi catastrófico e por muito pouco a escola não caiu para o grupo B, equivalente à terceira divisão.
A começar pela ausência de Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares Filho, grande homenageado da festa. Segundo Ana Elisa, sua neta, o arquiteto carioca nascido em 15 de dezembro, há exatos 97 anos (em memória ao gênio Oscar, hoje é comemorado o Dia do Arquiteto e Urbanista), era muito tímido e apenas compareceu a um ensaio-geral da escola.
Em seguida, houve muito problemas com a entrada de uma alegoria que fazia referência ao Memorial JK e trazia Elymar Santos como destaque (aquele que perguntava “Quem é que nunca recebeu uma cantada? / Quem é que nunca respondeu no mesmo tom? / Quem é que nunca recebeu um bilhetinho das mãos de um garçom?”).
A alegoria que fazia menção ao Memorial da América Latina de São Paulo, outra obra de Niemeyer, nem entrou na avenida, porque não passou por baixo do viaduto São Sebastião, por um erro de projeção (vejam só que ironia!). Explico. Para quem não conhece os bastidores do sambódromo carioca, a concentração das escolas ocorre na avenida Presidente Vargas. Metade das agremiações se concentra no chamado “lado dos correios”, em virtude da presença do edifício dos Correios, enquanto a outra metade, no “lado do Balança”, por conta da presença do icônico edifício “Balança Mas não Cai”, cujo vulgo dispensa maiores comentários. Quem se concentra desse lado tem, a poucos metros do início da passarela, que passar por baixo de um viaduto, e muitos problemas semelhantes ocorriam com outros desfiles, com os primeiros setores do enredo já no meio da avenida. Hoje as alegorias são modernas, com mecanismos hidráulicos que permitem que as estruturas sejam abaixadas ou levantadas com rapidez. Ainda assim, eventualmente o dedo ou a peruca de alguma escultura enroscam no famigerado viaduto.
Os problemas se estenderam ao samba-enredo que, segundo Fernando Pamplona, era uma “marchinha descarada”, e à bateria, que não acompanhou o andamento marcheado dado pela ala musical, na visão de Mestre Marçal. Os dois eram comentaristas da extinta TV Manchete, que fazia coberturas irrepreensíveis dos desfiles. Pamplona assinou diversos enredos do Salgueiro nos anos 60/70 e eternizou a máxima: “Tem que se tirar da cabeça aquilo que não se tem no bolso”, uma verdadeira ode à criatividade carnavalesca. Marçal comandou por muitos anos a bateria da Portela e compôs sambas ao lado de seu parceiro Alcebíades Barcellos, o Bide.
Nem a presença da bailarina Mercedes Baptista (a primeira negra a integrar o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro) na ala das baianas salvou a escola do oitavo lugar, no ano que Unidos do Viradouro e Acadêmicos do Grande-Rio conquistaram pela primeira vez o acesso ao grupo principal, onde se consagrariam (Viradouro é a atual campeã do grupo principal, repetindo a conquista de 1997, e a Grande Rio é a atual vice-campeã, repetindo a dobradinha de 1990 no grupo de acesso).
Pois é, senhores. Quis o destino que Brasília, projetada pelo arquiteto comunista (que também projetou o sambódromo da Marquês de Sapucaí), fosse ocupada por uma farândola de ineptos que parece correr do “fantasma do comunismo” no século XXI, sem terem a mais vaga ideia do que representam os ideais comunistas, a ponto de dizerem que alguns bancos os cultivam.
Bolsonaro, o parvo, acorda, come e dorme em um palácio projetado pela mente de um dos mais brilhantes comunistas que o mundo já conheceu. Só não dá pra dizer que ele trabalha em um palácio projetado por Niemeyer, a não ser que as definições de “trabalho” sejam profundamente revistas.
Uma coisa, pelo menos, é certa: quem sobreviver a essa balbúrdia caquistocrática em que nosso querido Brasil se transformou deverá assistir a muitos desfiles de carnaval colocando esse período em seu devido lugar da História. Afinal, o carnaval é o momento de festejar, sem amarras, esculachando a esculhambação.
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.