Por Alexandre Ferraz *
Ficou famoso o artigo de Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair, de 2015, sobre a desigualdade e a jaboticaba tributária do país. Os autores mostram o mal que a reforma de 1995, promovida no governo FHC, e arquitetada pelo então secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, fez ao país, ao retirar a tributação sobre lucro e dividendos. O que chama atenção é que essa isenção é uma “jaboticaba”, uma invenção que só existe no Brasil e, para não ser injusto... Na Estônia. Nos cálculos que os dois fizeram em 2015 a reintrodução desta tributação colaboraria para redução da desigualdade e para o ajuste fiscal, com uma arrecadação de R$ 50 bilhões. A proposta é mais atual do que nunca. A crise provocada pela pandemia colocou-a de volta no topo da agenda a reforma tributária e o ajuste fiscal.
O Brasil é extremamente generoso com os mais ricos e a isenção da tributação de lucros e dividendos é um desses presentes. Segundo os dados da declaração do Imposto de Renda de 2019, referente ao ano base de 2018, foram registrados o recebimento de R$ 327,9 bilhões em lucros e dividendos isentos de qualquer tributação. Além de R$ 31,2 bilhões em participação nos lucros e resultados, a PLR, que tem tributação “exclusiva”, e que são deduzidos como despesa pelas empresas e depois tributadas no Imposto de Renda dos empregados (IRPF).
Os mais ricos no Brasil acham injusto que o lucro já tributado na empresa volte a ser tributado quando repassado para pessoa física. Mas o fato é que no Brasil a tributação sobre lucros é baixa e a prática internacional é que para que a empresa possa crescer, investir e se fortalecer sejam taxadas de forma separada as “retiradas”, ou os lucros e dividendos. A tributação total dos lucros no Brasil, por conta da isenção, é de 30%. Nos EUA (57%), na França (64%) e na Alemanha (48%), como mostram os autores. No Brasil, como vimos, os empregados que ganham PLR têm que pagar tributos, mas os acionistas não pagam nada.
A jaboticaba tributária não favorece todos os brasileiros, mas tem endereço específico. Quem leva os R$ 327,9 bilhões de lucros e dividendos? Os dados da Receita ajudam a entender quem saboreia a jaboticaba criada em 1995. Em 2019, pouco menos de 30 milhões de pessoas declararam o Imposto de Renda referente a 2018, mais ou menos 1/3 dos ocupados naquele ano. Se dividirmos os declarantes em 100 grupos usando como critério a Renda Total Declarada (incluindo a renda tributável, isenta e de tributação exclusiva), ficamos com 299 mil declarantes em cada grupo.
A divisão chamada de divisão em percentil mostra uma parte da pirâmide de renda no Brasil. Na base desta pirâmide temos 4% de declarantes que não declaram renda, mas que por terem bens e direitos acima do mínimo, declararam o IRPF. Vale lembrar que a isenção do IRPF em 2018/19 alcançava os declarantes que recebiam até 2 salários-mínimos, o que retirava da obrigação de declarar 70% dos ocupados no Brasil e 51% dos trabalhadores formais. No alto da pirâmide havia 1% dos declarantes que recebiam 19% de toda renda declarada, e 70% dos lucros e dividendos auferidos no país.
É no alto desta pirâmide que encontramos o lucro e o dividendo pagos pelas empresas aos proprietários e acionistas. Os 10% com maior renda declarada respondem por 92% dos lucros de dividendos, enquanto os 50% com menor renda ficam com 0%. Não estamos falando dos brasileiros mais pobres, estamos falando dos declarantes mais pobres que quase que por definição já estão entre os 1/3 mais rico. O “andar de baixo do andar de cima” recebe lucros e dividendos, mas o valor é incipiente, menos do que R$ 250 reais por pessoa. Apenas os 30% mais ricos ganham lucros e dividendos em média superiores a mil reais por ano e apenas os 7% mais ricos recebem mais do que este valor ao mês.
A desigualdade, da ótica do recebimento de lucros de dividendos, é ainda mais aguda quando olhamos para o topo da pirâmide. O 1% mais ricos é composto por 299 mil declarantes que apropriaram R$ 223,2 bilhões dos R$ 318,4 bilhões, distribuídos como lucros e dividendos em 2018 (Gráfico). Continuando, subindo ao topo do top temos 0,1% de declarantes, ou 29,8 mil famílias que se apropriam de 40% do total de lucros e dividendos distribuídos pelas empresas (R$ 129 bilhões) e nada mais, nada menos, do que 58% do que fica com o 1%.
A discussão sobre a retomada da tributação sobre os lucros e dividendos é dominada por este pequeno grupo, que são os grandes beneficiários da “isenção”. Enquanto o restante da sociedade olha admirado a riqueza deste pequeno grupo pela vitrine, sem conseguir entender o que está ocorrendo, o pequeno grupo de beneficiários se mobiliza com todas suas forças e riqueza para manter seu privilégio. A eficiência e eficácia do lobby do andar de cima é indiscutível.
A tributação sobre lucros e dividendos poderia gerar um benefício coletivo para sociedade, menos desigualdade e equilíbrio fiscal. Mas a ação coletiva para o bem comum tende a se esvaziar, com as pessoas acomodadas no banco do carona, incapazes até mesmo que arcar com o custo de se informar melhor. Deixe que me entupam de fake new gratuita sobre o custo dos impostos no país. Enquanto isso, o pequeno grupo de beneficiários garante a defesa de seus interesses junto aos políticos e em nome do seu bem comum.
Qualquer tentativa de reestabelecer a tributação dos lucros e dividendos recebe logo o apoio do andar de baixo: “Já pagamos muitos impostos!”, “O Brasil é o país que mais cobra imposto do mundo! E o impostômetro é citado como prova cabal dos fatos!”.
A miopia do andar de baixo
A associação de comerciantes de São Paulo não deixa de ter razão. Afinal, o Brasil não é o país que mais cobra imposto do mundo, mas é um dos que mais cobra imposto sobre o consumo, que é 43% da arrecadação total com impostos e contribuições, contra 32% da média dos países da OCDE. O imposto sobre consumo é regressivo e penaliza proporcionalmente mais os mais pobres.
É o contrário do que deveria ser feito. É preciso aliviar a carga sobre o consumo e sobre as empresas e contrabalançar este alívio com o aumento da tributação sobre o lucro e patrimônio, criando uma alíquota progressiva que recaia principalmente sobre o 1% mais rico e principalmente sobre os 29 mil declarantes no top deste seleto grupo. Uma alíquota de 20% neste grupo, sozinha, poderia gerar uma receita de R$ 26 bilhões. Como cada contribuinte nesta faixa de renda recebe cerca de R$ 360 mil livres de imposto, com a volta deste na alíquota proposta, receberia R$ 288 mil por mês, ou cerca de três milhões e meio por ano. Não vai doer e promete ajudar muitos brasileiros que hoje necessitam de auxílio, seja ele emergencial ou permanente. As propostas estão na mesa e não fazer nada é uma escolha que já sabemos a quem beneficia.
*Alexandre Sampaio Ferraz é economista do Dieese e doutor em Ciência Política
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum