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DEBATES
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Por Antonio Carlos Carvalho*
O sistema judiciário brasileiro é vítima da instabilidade democrática que ele próprio ajudou a criar. A atual crise entre ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e a Procuradoria Geral da República (PGR) demonstra que não há estabilidade institucional no Brasil.
Não foram poucos os alertas lançados contra a postura, ora omissa, ora ativa, da maior corte jurídica brasileira ante as ilegalidades cometidas no Brasil desde o golpe de 2016. Da omissão sobre os absurdos do processo do impeachment de Dilma até a anuência com a inadmissível prisão de Lula, a parcela mais influente do Judiciário brasileiro flertou com o caos, e agora é vítima daquilo que ajudou a criar.
A recente “treta” entre os ministros do Supremo e a PGR aponta para um incêndio nas castas mais altas da nobreza togada do Brasil. Soma-se a isso uma franca campanha difamatória (“Lava-Toga”) por parte exatamente daqueles que participaram da criminosa cadeia de fake news que foi fundamental para eleger Jair Bolsonaro presidente.
Nessa confusão, não há espaço para ingenuidades. A última ação de Alexandre de Moraes e Dias Toffoli foi no sentido de ordenar buscas e apreensões nas residências de difusores de notícias mentirosas e difamatórias contra os ministros e contra o Supremo. Nesse mesmo movimento, Moraes ordenou a suspensão de publicação da matéria da revista Crusoé que dava conta de um suposto esquema da Odebrecht envolvendo o atual presidente do STF. A PGR, que não estava envolvida na brincadeira de Toffoli e Moraes, resolveu entrar no jogo determinando o arquivamento das investigações da corte e foi sumariamente desautorizada.
A discussão sobre censura e liberdade de expressão da revista Crusoé é uma cortina de fumaça diante do problema realmente exposto. O portal Buzzfeed Brasil noticia de que a denúncia contra Toffoli teria sido plantada por procuradores da Lava-Jato indignados com a limitação institucional do STF à operação no último período. O portal chega a afirmar que advogados informaram que houve um pedido expresso da Lava-Jato para que o corruptor Marcelo Odebrecht envolvesse o presidente do Supremo em sua delação.
Como em qualquer análise política, reações precipitadas e superficiais podem causar mais problema do que gerar reflexão. A questão principal aqui é o alerta de que o poder Judiciário não está alheio aos dilemas da profunda crise institucional que o Brasil vive hoje. Basta ver que os índices de confiança do poder são tão baixos quanto a média das outras instituições. Ao se calar ante aos abusos de Moro e da operação Lava-Jato, em especial contra o PT, seus dirigentes e o presidente Lula, o Supremo se posicionou no meio do terreno que hoje está em chamas. As togas que deveriam servir para abafar o fogo agora são insumos para o incêndio que toma conta do Brasil.
Mas não é apenas a instabilidade democrática gerada contra o PT que jogou o Judiciário nessa lamentável condição. Sistematicamente, depois da Constituição Federal de 1988, boa parte do Ministério Público e do Judiciário brasileiro foram peças-chave numa desenfreada e sistêmica organização de judicialização da política, criminalização dos movimentos sociais e encarceramento em massa da população pobre, preta e periférica do Brasil. Soma-se a isso um comportamento distante e elitista de boa parte dos operadores do Direito. Temos então uma perfeita tempestade em que o povo não reconhece no Judiciário os valores da justiça e da democracia. O número de detentos sem julgamento definitivo é alarmante, e a injustiça cometida contra Lula é uma decorrência lógica de anos de abusos e segregação judicial.
A viabilização de um poder sem controle externo e sem permeabilidade com o interesse popular criou uma casta de burocratas medíocres, preconceituosos, misóginos e racistas, que representam com total identidade aqueles que dedicam suas vidas a destilar ódio e mentira nas redes sociais. Esse foi o galão de combustível inflamável colocado ao lado do pavio que está enrolado nas togas. Ainda há juízes cujo ideal de justiça se mantém. Resta esperar que suas togas sejam suficientes para apagar o incêndio.
*Antonio Carlos Carvalho é advogado e consultor da Fundação Perseu Abramo. Publicado originalmente no site da Fundação Perseu Abramo.