DENSO ALGORITMO

Contra os "deuses" do Vale do Silício: o que diz a música 'Anjos Tronchos', de Caetano Veloso

Artista baiano escancarou impactos sociais, políticos e psicológicos provocados pelas grandes plataformas em canção única

Capa da música 'Anjos Tronchos'.Créditos: Divulgação
Escrito en CULTURA el

"Anjos Tronchos é uma canção que terminou ficando extremamente densa. Vivemos hoje mergulhados num mar de algoritmos, possibilidades diversas de redes sociais e aparatos tecnológicos que avançam muito depressa. Eu não tenho tanto domínio sobre o assunto, mas acredito que canções são capazes de obter reflexões na mente de quem as ouve", afirmou Caetano Veloso em uma entrevista concedida em 2021, ano de lançamento da música "Anjos Tronchos".

Na contramão da exaltação das inovações tecnológicas vendidas pelas gigantes de tecnologia dos Estados Unidos em um mundo pandêmico, Caetano Veloso lançou a canção faixa do álbum Meu Coco, que reflete nosso cenário tecnológico  e ainda serve como uma das críticas mais contudentes ao domínio das big techs.

Embora não haja muita expectativa de regulação, aqui no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) volta a julgar nesta quarta (11) os recursos que discutem a responsabilidade das redes sociais por publicações ilegais e desinformação de seus usuários e conteúdos ofensivos, problemas recorrentes das plataformas e delegados por Mark Zuckerberg e Elon Musk e outras diversas empresas de tecnologia grandes do mercado de ação.

O retrato inquietante da era digital traçado pelo artista baiano busca mostrar como os algoritmos das gigantes de tecnologia trabalham para moldar comportamentos e "colonizar" a subjetividade coletiva. Em uma das estrofes, a música põe em xeque a política imposta pela lógica das plataformas. "Anjos tronchos" são metáforas para as figuras (humanas ou não) que criam e operam as tecnologias no Vale do Silício, berço das grandes empresas digitais (Google, Facebook, Apple, OpenAI, etc.).

São "tronchos" (tortos, deformados), ou seja, não são anjos salvadores. Representam no caso uma espécie de salvação distorcida — entidades que deveriam  elevar, mas conduz a sociedade ao colapso ético, cognitivo e psicológico.

Uns anjos tronchos do Vale do Silício
Desses que vivem no escuro em plena luz
Disseram, vai ser virtuoso no vício
Das telas dos azuis mais do que azuis

Caetano brinca com a metáfora ao sugerir que essas figuras habitam a escuridão moral e espiritual, mesmo estando “em plena luz” — ou seja, em evidência e "visibilidade" pelas telas, sem se abrirem com relação a suas políticas internas e transparência no meio digital. Já na segunda estrofe Caetan vai mais fundo e afirma que a própria identidade é e será transformada em dado. A história, a memória, e as trajetórias pessoais são reduzidsa a uma sequência de dados analisados, processados e comercializados.

Agora a minha história é um denso algoritmo
Que vende venda a vendedores reais
Neurônios meus ganharam novo outro ritmo
E mais e mais, e mais e mais, e mais

Na terceira estrofe, o cantor lembra do primeiro caso de resistência no meio digital com implicações reais entre países: a Primavera Árabe de 2010–2011), logo seguido pelo desencanto: repressão, guerra civil, caos político.

Primavera Árabe, e logo o horror
Querer que o mundo acabe-se
Sombras do amor

Ainda reflete sobre como essas plataformas fortalecem o ódio e o neofascismo de políticos ultradireitas e conservadores, e aumentam a grana de homem ricaços, que provocam retrocesses históricos em direitos humanos quando estão no poder.

Palhaços líderes brotaram macabros
No império e nos seus vastos quintais
Ao que revêm impérios já milenares
Munidos de controles totais

Anjos já mi ou bi ou trilionários
Comandam só seus mi, bi, trilhões
E nós, quando não somos otários
Ouvimos Shoenberg, Webern, Cage, canções

Após o mergulho no caos contemporâneo — algoritmos que nos vendem, neurônios reprogramados, líderes grotescos, telas azuis e palhaços no poder — Caetano não termina no cenário sombrio, mas com uma aposta na poesia.

Mas há poemas como jamais
Ou como algum poeta sonhou
Nos tempos em que havia tempos atrás
E eu vou, por que não?
Eu vou, por que não? Eu vou

Confira a letra completa: 

Uns anjos tronchos do Vale do Silício
Desses que vivem no escuro em plena luz
Disseram, vai ser virtuoso no vício
Das telas dos azuis mais do que azuis

Agora a minha história é um denso algoritmo
Que vende venda a vendedores reais
Neurônios meus ganharam novo outro ritmo
E mais e mais, e mais e mais, e mais

Primavera Árabe, e logo o horror
Querer que o mundo acabe-se
Sombras do amor

Palhaços líderes brotaram macabros
No império e nos seus vastos quintais
Ao que revêm impérios já milenares
Munidos de controles totais

Anjos já mi ou bi ou trilionários
Comandam só seus mi, bi, trilhões
E nós, quando não somos otários
Ouvimos Shoenberg, Webern, Cage, canções

Ah, morena bela, estás aqui
Sem pele, tela a tela
Estamos aí

Um post vil poderá matar
Que é que pode ser salvação?
Que nuvem, se nem espaço há
Nem tempo, nem sim nem não
Sim, nem não

Mas há poemas como jamais
Ou como algum poeta sonhou
Nos tempos em que havia tempos atrás
E eu vou, por que não?
Eu vou, por que não? Eu vou

Uns anjos tronchos do Vale do Silício
Tocaram fundo o minimíssimo grão
E enquanto nós nos perguntamos do início
Miss Eilish faz tudo do quarto com o irmão

Assista o clipe oficial

 

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