CINEMA

Quatro filmes para entender a experiência feminina contemporânea

Quando a vida vai começar? E o que fazer dela? A experiência de ser mulher e se tornar adulta é complexa, e melhor experimentada com a arte

Cena de Frances Ha (2012).Créditos: Reprodução / filme
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Construir e terminar relacionamentos, descobrir o que fazer (e o que não fazer) da vida, ter filhos ou não (ou tê-los por acidente), migrar para outro país, enfrentar o mercado imobiliário selvagem das grandes cidades, perder amizades e se reencontrar nelas, o tédio, o ócio, a vontade de construir algo concreto num mundo em que nada mais parece real ou genuíno: todas essas experiências são inerentemente humanas, mas esta lista de filmes mostra como tomam uma feição diferente quando são, também, experiências femininas.

1. A Pior Pessoa do Mundo (2021)

Pôster de A Pior Pessoa do Mundo (2021). 
Créditos: reprodução

Um dos favoritos dos últimos tempos, o filme norueguês dirigido por Joachim Trier passa por uma fase da vida pessoal e amorosa de Julie, uma jovem adulta em um relacionamento longo que perdeu o encantamento.

Antes, uma jovem adulta que nunca soube exatamente o que queria ser: ela cursava medicina porque "era tão difícil passar no curso", e a dificuldade dava significado à experiência.

Mas então ela descobriu que o que a interessava mesmo eram "sentimentos e pensamentos": a psicologia. O que ela viu durante a faculdade de psicologia, no entanto, foram pessoas pouco profundas, "em grande parte garotas com borderline e disfunção alimentar".

"Quando a vida vai começar?"

Mesmo quando ela tentou a fotografia, gastou "todo o seu empréstimo estudantil em câmeras e lentes", não se sentiu pronta.
O título, A Pior Pessoa do Mundo, é um retrato de como Julie se sente em boa parte do filme: ela passa de uma acadêmica brilhante para atendente numa livraria, não se sente pronta para dar o próximo passo na vida amorosa (pressionada pelo parceiro mais velho a pensar em filhos), e está cansada de fazer sala para o ego do namorado, um famoso quadrinista.

Parece ser um eco de todos os filmes a seguir, em que mulheres navegam a primeira década da vida adulta desajeitadamente, na maior parte das vezes insatisfeitas com a situação atual das coisas: é impossível perseguir os próprios interesses (ou descobrir quais são), os relacionamentos parecem fora de lugar, e o que resta é a tentativa, ainda mais incerta, de se encontrar em diferentes experiências.

É o que a protagonista faz: engaja em um novo romance com um estranho com quem se sentiu uma nova pessoa, mais interessante e sexy; e abandona o namorado para viver com ele.

Ao conseguir publicar um artigo pessoal no jornal, sente-se ainda mais confiante de si e pronta para explorar a "experiência feminina".

Seja ao usar um psicodélico e ver a si mesma na figura de uma mulher mais velha e cheia de pelancas ou, quando descobre que o antigo namorado está doente, visitá-lo para refletir sobre o amor que, quando ele se for, "vai acabar com ele", Julie tem um dilema perpétuo:

"Você parece estar esperando por algo. Eu não sei o que é."

A dificuldade de encontrar-se na sua própria vida, algo que os livros de Sally Rooney, a irlandesa famosa por Pessoas Normais, já têm abordado com sucesso ("Marianne tinha a sensação de que sua vida estava acontecendo em algum lugar muito longe, acontecendo sem ela"), é uma marca também de Julie e de todas as mulheres jovens da lista.

2. Frances Ha (2012)

Pôster de Frances Ha (2012).
???Créditos: reprodução.


Greta Gerwig, que interpreta a protagonista em Frances Ha, também é um nome em ascensão para o cinema "feminino". Ela tem um outro título na lista (Mistress America), e é uma das representantes da sensação de não saber o que fazer da vida. Quando se é jovem e pouco cínica em Nova York, a cidade do barulho, das oportunidades, da cultura e dos aluguéis terrivelmente altos, é difícil se encontrar e se estabilizar.

Frances Ha, um filme moderno em preto e branco, com direção de Noah Baumbach, é um desses filmes em que a protagonista (interpretada pela própria Greta) tem um espírito imbatível, de uma forma que faz o espectador se sentir preocupado.

Mesmo em meio ao abandono da melhor amiga (no fim, o filme também é, em grande parte, sobre a amizade entre duas mulheres), ou quando não consegue o papel que tanto queria na companhia de balé em que trabalha (um ofício muito clássico e para o qual ela não tem talento), Frances, a protagonista do filme de Gerwig, não perde a esperança.

Aliás, talvez nem seja justo chamar de esperança; a personalidade de Frances é imaginativa (o que os jovens talvez chamem de "delusional") e ela só consegue gostar das coisas que gosta, sem espaço para se encaixar na visão tradicional de, por exemplo, trabalhar em algo que exija uma habilidade que ela tenha, ao invés do contrário.

A personalidade comicamente sem noção de Frances fica clara quando, no começo do filme, seu namorado de longa data, Dan, diz que gostaria de adotar um gato.

"E quem vai cuidar deles se você for viajar?", pergunta Frances. Ao que ele responde: "Pensei em adotarmos juntos."
"Mas aí ficaríamos indo e voltando dos nossos apartamentos?"

"Não...", diz Dan, "talvez você possa se mudar comigo."

O relacionamento termina mal, em parte, porque Frances "tem outra coisa" no caminho: a promessa de ficar no apartamento que divide com a melhor amiga, Sophie, até o fim do contrato de aluguel. No dia seguinte, ela descobre que Sophie já alugou um apartamento com outra pessoa, sem avisar.

Quando Frances vai jantar na casa de amigos mais velhos e acaba se envergonhando um pouco com o jeito pouco autoconsciente e muito honesto de ser, ela tem o seu monólogo mais significativo, que torna o filme tão especial: ao ser perguntada sobre o que gostaria num relacionamento, Frances responde que "o que pode explicar por que está solteira" é o desejo de ter uma experiência específica, o momento em que se está com alguém, sabe que ama a pessoa e que ela te ama, mas

"É uma festa, e vocês dois estão conversando com outras pessoas, rindo e reluzentes, e aí vocês olham para o outro lado da sala e se encontram: não porque sejam possessivos ou porque aquilo seja algo sexual, mas porque essa é a sua pessoa nesta vida. E é engraçado e triste, mas só porque esta vida vai acabar, e é um mundo secreto que ninguém mais conhece, que existe ali, em público, sem ser notado, mais ou menos como dizem que outras dimensões existem ao nosso redor, mas não temos a capacidade de percebê-las. É... é isso que eu quero de um relacionamento. Ou só da vida, eu acho. Amor. Blá."

3. Mistress America (2015)

Pôster de Mistress America.
Créditos: reprodução


Mais um filme com atuação (e, desta vez, direção) de Greta Gerwig, Mistress America é um dos mais fascinantes da lista porque, seguindo o estilo de Gerwig, é repleto de monólogos existenciais e poéticos, tem mais uma personagem principal pouco autoconsciente e nada cínica, e reflete sobre o sentido de fazer coisas não só pelo sucesso ou pela autorrealização profissional, mas pelo propósito pessoal de tornar o mundo um lugar mais genuíno.

Tracy, uma caloura que está tendo dificuldade de produzir e tende a procrastinar, encontra sua meia-irmã, Brooke, que tem uma personalidade caótica e extrovertida, muito parecida com a de Frances Ha. A intenção de Tracy é produzir um conto inspirado em Brooke, que já parece, em todos os sentidos, uma personagem caricata.

Brooke tem diversas ideias de empreendedorismo fadadas ao fracasso por serem muito mirabolantes ou esquisitas, mas todas carregam a paixão de Brooke pelo que representam.

Sua ideia final é a de abrir um restaurante diferente, um espaço cultural que sirva comida "afetiva", o Mom’s, que serviria "fatias de pães que as pessoas arrancariam aos pedaços. Seria o tipo de lugar onde, às 2 da manhã, o chef e os garçons sairiam e comeriam algo simples, que eles mesmos teriam preparado, com os outros clientes, e abririam uma garrafa de um bom vinho".

A ideia é vista por Tracy como "o melhor do capitalismo, o que os políticos fingem que querem dizer quando falam de 'pequenas empresas'".

Para isso, ela precisa de dinheiro, que então decide pedir, como forma de investimento, ao seu ex-namorado e a uma antiga amiga com recursos, Mimi-Claire — hoje casada com ele —, e o oposto de Brooke.

O ponto alto do filme é o momento em que, na casa do ex-namorado e sua atual esposa, Brooke, Tracy e seu namorado (que vão com ela até lá) encenam uma grande peça conjunta, idealizada para ser uma reunião de negócios, mas que acaba passando por situações do passado, ressentimentos, reflexões sobre identidade e amadurecimento.

"Você é engraçada porque não sabe que é engraçada", diz o ex-namorado a Brooke.

"Eu sei que sou engraçada. Não tem nada que eu não saiba sobre mim mesma. É por isso que eu não consigo fazer terapia."

"Às vezes eu realmente acho que sou mais inteligente e melhor do que todo mundo", diz Tracy durante o clímax do filme. "Não necessariamente em matemática, ciências ou em saber se algo é oriental ou ocidental, mas praticamente em todo o resto. E se eu conseguisse entender minha aparência, eu seria a mulher mais bonita do mundo também."

4. A Cidade Onde Envelheço (2016)
 

Pôster de A cidade onde envelheço (2016).
Créditos: reprodução

A Cidade Onde Envelheço é ambientado no Brasil, em Belo Horizonte. O filme, dirigido pela cineasta brasileira Marília Rocha, fala de duas amigas portuguesas, Francisca e Teresa, que se mudam para o Brasil e lidam, durante sua estadia, com a saudade de casa que a presença de uma invoca na outra.

Sobre mulheres um pouco mais maduras, mas ainda descobrindo ao longo do caminho o que fazer de suas vidas, o filme passa por cenas famosas de Belo Horizonte, como o bar de sinuca Tim Bilhares, e aborda a convivência das mulheres entre si a sua relação com a cidade.

Francisca, mais introspectiva, aprende com Teresa, mais enérgica e espontânea, a explorar, e a amizade entre elas passa por tensões até a partida inevitável de Teresa.

A relação profunda com a cidade, a saudade da terra natal e o ritmo lento do filme o tornam, de certa forma, uma experiência contemplativa, e fazem emergir uma reflexão sobre pertencimento, envelhecimento e o desejo de ficar ou partir.

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