LITERATURA

Guerra e Paz: o clássico de Tolstói sobre a condição humana em tempos de conflito

Escritor repensou narrativa histórica em obra que dialoga com o impacto de conflitos mundiais sobre a vida de civis e a natureza humana

Clément Auguste Andireux retrata a Batalha de Waterloo; em Guerra e Paz, são os personagens que contam a guerra.Créditos: Clement Auguste Andrieux/domínio público
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Guerra e Paz foi publicada entre 1865 e 1869, ao longo de quatro anos, em uma série de obras que acompanham a vida de famílias aristocráticas do século XIX — os Rostov, os Bolkonsky e os Bezukhov — durante as Guerras Napoleônicas, mas não se reduz a retratar as festas da nobreza russa em São Petersburgo, mas sim os horrores da guerra e desgaste emocional de seus combatentes

A narrativa entrelaça eventos históricos com histórias pessoais e de natureza humana que dialogam com o impacto de conflitos mundiais na vida comum. Logo no título, Liev Tolstói, autor do livro, indica que existe contradição entre guerra e vida e que ela permeia os tempos da História, questionando se as pessoas podem realmente alterar o seu curso e apontando que muitos acontecimentos são determinados por forças fora do alcance humano. O escritor reconstitui a narrativa histórica como se conhecia até então à época.

As relações interpessoais, tanto familiares quanto românticas, estão no centro de Guerra e Paz. O livro produz uma profundidade psicológica sobre a condição humana. A busca por significado é constante entre os personagens em contraponto ao desejo, especialmente em Pierre Bezukhov, cuja evolução interior sustenta grande parte do enredo.

Humanista e não heroica: a finitude diante da violência

Segundo o escritor em 1868, Guerra e Paz “não é um romance, nem uma epopeia, muito menos uma crônica histórica. É simplesmente o que ele quis e pôde expressar da maneira como a obra foi criada.”

O livro funciona como um protesto contra a tolice daqueles que governam e mostra a dificuldade de um Estado adotar uma visão humanista sobre seu povo e outros povos. Em um momento, o personagem Nikolai Rostóv interrompe a universidade para servir no Exército e, em certo ponto, começa a questionar a essência da batalha:

“Quem são eles? Por que estão aqui? O que querem? E quando tudo vai terminar?”, pensava Rostóv, enquanto olhava para as sombras que se moviam à sua frente. A dor na mão se tornava cada vez mais torturante. O sono o dominava de forma irresistível, círculos vermelhos palpitavam em seus olhos, e a impressão daquelas vozes e daqueles rostos e o sentimento de solidão fundiam-se com a sensação de dor. 

Eram eles, aqueles soldados, os feridos e também os sem ferimento, eram eles que oprimiam, pesavam, sugavam as energias, queimavam a carne no seu braço quebrado e no seu ombro. A fim de se livrar deles, fechou os olhos.

(…)

Rostóv abriu os olhos e olhou para cima. A cortina negra da noite pendia um archin acima da luz dos carvões. Nessa luz, voavam grãos da neve que caía. Túchin não voltava, o médico não chegava. Rostóv estava só, agora apenas um soldadinho qualquer estava sentado e despido do outro lado do fogo e aquecia seu corpo magro e amarelo.

“Ninguém precisa de mim!”, pensou Rostóv. “Ninguém vem me ajudar, ninguém tem pena. Quem dera eu estivesse em casa, como antes, forte, alegre, amado.”

Processos históricos

Por meio de sua escrita, o autor retoma perguntas inquietantes, como: o que desencadeia “um evento contrário à razão e à natureza humana?” e quais são suas causas:

“Milhões de pessoas praticaram, umas contra as outras, uma quantidade tão inumerável de crimes, embustes, traições, roubos, fraudes, falsificações de dinheiro, pilhagens, incêndios e assassinatos, como não se encontra nos autos de todos os tribunais do mundo em séculos inteiros, e, naquele período, as pessoas que agiam assim não consideravam que nada disso fosse um crime. O que produziu tal acontecimento extraordinário? Quais foram suas causas?”

Tolstói afirma que embora haja esforços para racionalizar os eventos históricos, eles continuam sendo “irracionais e incompreensíveis”. Essas reflexões mostram que Guerra e Paz propôs uma visão de História que contrariou correntes historiográficas marcadas por viés político e sustentadas na noção de progresso linear e único. 

O clássico é atemporal ao nos levar a refletir sobre a permanência das guerras geopolíticas ocidentais e até mesmo a polarização e o fomento ao ódio no presente, muito presente em motivações de conflitos e guerras entre nações. Mesmo com uma visão situada no século 19, o clássico segue relevante e consegue mostrar como indivíduos se posicionam — ou se desorientam — diante dos acontecimentos históricos. 

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