INCLASSIFICÁVEL

Ney Matogrosso: "Se eu dependesse do streaming, estaria na miséria"

Em entrevista exclusiva à Fórum, o cantor analisa a situação política do Brasil, fala sobre masculinidades e comenta seu livro de memórias, que será discutido em evento do CCBB no Rio de Janeiro

Ney Matogrosso: "Se eu dependesse do streaming, estaria na miséria".Créditos: Marcelo Fonseca/Folhapress
Escrito en CULTURA el

Desde que surgiu no cenário da música brasileira, em plena ditadura militar, como vocalista da banda Secos e Molhados, Ney Matogrosso subverteu todos os códigos da sexualidade e, principalmente, das masculinidades. No entanto, sempre fugiu dos rótulos e, em entrevista exclusiva à Fórum, ele é enfático: “Eu caguei para os rótulos”.

O trabalho que Ney Matogrosso desenvolveu ao longo de sua carreira como cantor, mas também como exímio performer, adiantou tudo aquilo que, a partir dos anos 1980, passou a ser chamado de "queer" — que, em termos mais diretos, eram as manifestações sociais e artísticas que buscavam fugir das classificações... Algo que Ney fez a vida toda: inclassificável.

Toda essa construção estética e musical está presente no seu livro de memórias, intitulado Vira-Lata de Raça (Tordesilhas), produzido em parceria com o escritor Ramon Nunes Mello, com quem o cantor tem uma longa relação de amizade. Lançado em 2018, Matogrosso e Mello vão, pela primeira vez, debater a obra de maneira pública, em evento organizado pelo Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 9 de abril. Um encontro histórico.

Na entrevista que você confere a seguir, Ney Matogrosso analisa o impacto das suas performances no campo das sexualidades e também nas masculinidades — discussão que, para o cantor, "expandiu". “Eu acho que, de uma certa forma, caminhamos. Claro, ainda existe muita coisa para ser consertada, mas a mentalidade sobre esse assunto se expandiu”, analisa Matogrosso.

Além disso, o artista reflete sobre a ascensão da extrema direita e afirma que, apesar da força atual deles, nada pode impedir “o caminhar da humanidade”. “Olha, num certo sentido, tinham ganhado força, mas acontece que não há força que se levante contra o caminhar da humanidade”, diz Ney Matogrosso.

No contexto político e cultural do Brasil, Ney Matogrosso também falou sobre o momento atual da indústria da música, hoje concentrada nos streamings de áudio. Matogrosso revela que, se hoje dependesse apenas dos direitos autorais de suas músicas, “estaria na miséria”. “Eu não vivo disso [streaming], felizmente. Já vivi de direitos autorais e com dinheiro de venda de discos. Hoje isso não existe mais. Eu recebo miséria [...] mas se eu fosse depender dessa indústria fonográfica [streaming], eu estaria na miséria. Durma com um barulho desse”, revela aquele que é um dos maiores artistas do Brasil e do mundo.

Divulgação 


Fórum – Eu queria que você contasse para nós como foi essa experiência de reunir as suas memórias, de uma carreira tão longa como a sua. Como foi esse trabalho? Fala um pouco pra nós desse processo.

Ney Matogrosso – Esse é o segundo livro que fizeram sobre mim. O primeiro eu achei muito precoce. Eu tinha 50 anos... Eu acho muito estranho ficar falando da minha vida. Aí, nesse (Vira-Lata de Raça), já fui mais fácil, porque eu já tinha feito um e tinha tido muito bate-boca com a pessoa que escreveu. E também é o seguinte: ele [Ramon Nunes Mello, editor da obra] é meu amigo, já conhecia há tempos.
 

Fórum – De onde veio o título?

Ney Matogrosso – Eu que pedi. Era uma música da Rita Lee, em que ela coloca todas as referências da vida dela: Marlon Brando, James Dean… também são as minhas. Nós somos da mesma geração... e eu achei muito irônico botar um título desse.

Ney Matogrosso e Ramon Nunes Mello/ Foto: Isa Pessoa/ Divulgação


 

Fórum – Tem uma questão que eu acho da sua carreira, que é a performance e a maneira como você sempre trabalhou a questão das fronteiras em torno da masculinidade. Avançamos em torno das questões sobre a masculinidade?

Ney Matogrosso – Eu acho que, de uma certa forma, caminhamos. Claro, ainda existe muita coisa para ser consertada, mas a mentalidade sobre esse assunto se expandiu.
 

Fórum – Mas o que você considera que expandiu?

Ney Matogrosso – Ué, já não é mais aquele bicho de sete cabeças que era. Claro que, lá no interior do Brasil, ainda é um tema para as pessoas, mas eu acho que, de uma maneira geral, está muito expandido esse tema, a discussão sobre isso. Eu acho, posso estar equivocado... mas eu também estou falando da minha experiência. Eu não vejo nenhuma... nada contra a minha vida e a minha maneira de viver.

Fórum – A vestimenta masculina sempre foi meio funerária, escura...

Ney Matogrosso – Isso de vestimenta é uma bobagem, porque vestimenta não determina nada. Você pode estar super bem vestido e ser um cafajeste ordinário.

Fórum – Sim, concordo. Mas existe um padrão de gênero que determina como os homens devem se vestir, também está vinculado à orientação sexual... isso é uma questão de padrões de gênero impostos a partir da vestimenta.

Ney Matogrosso – Certo, mas a vestimenta não determina a pessoa... não é isso?

Fórum – Sim, mas os homens conquistaram mais liberdade para se vestir. Hoje o armário masculino tem mais cores.

Ney Matogrosso – Sim, já não se vestem mais de ternos. Toda a população brasileira se vestia de terno.

Fórum – E hoje a vestimenta masculina tem mais cores.

Ney Matogrosso – Tem cor! Imagina, você vê fotos do Rio de Janeiro, nos anos 60, era todo mundo de terno na rua, pra ir trabalhar.

Fórum – Ney, seu livro de memórias Vira-Lata de Raça foi lançado em 2018, ano em que Bolsonaro se torna presidente e, juntamente com o seu grupo político, busca resgatar um tipo de homem/masculinidade que a gente quer manter distância. Como você avalia esse período do Brasil?

Ney Matogrosso – Eu acho que o castelo está caindo. O castelo dessa estrutura aí está despencando. Não acha?

Fórum – Mas, com esse castelo despencando, você acha que pode vir coisa melhor ou pior?

Ney Matogrosso – Meu filho, da espécie humana a gente tem que esperar de tudo. É até melhor, sabe?

Fórum – Mas você considera que esses movimentos ultraconservadores que voltaram a ficar na moda ganharam ou perderam força?

Ney Matogrosso – Olha, num certo sentido tinham ganhado força, mas acontece que não há força que se levante contra o caminhar da humanidade, não é isso? Impedir que nasçam crianças homossexuais... A homossexualidade não é uma escolha. Você nasce ou não se nasce homossexual. Ninguém vai poder conter, a não ser que proíbam as mulheres de terem filhos. Quando o Bolsonaro chegou ao poder, eu falei isso.

Fórum – Você já disse em várias ocasiões que é contra os rótulos. Por que o rótulo te incomoda tanto?

Ney Matogrosso – Porque eu prefiro que me vejam sem rótulos, que não olhem para mim e tirem uma conclusão. E há vários rótulos que inventaram a meu respeito. Mas eu não me guio por rótulos que criam sobre ninguém. Eu presto atenção na pessoa. O rótulo é chato, o rótulo já determina por baixo.

Fórum – O rótulo congela a pessoa.

Ney Matogrosso – É. E nada vai adiante daquilo.

Fórum – E quando você sai do rótulo, você é criticado.

Ney Matogrosso – Ah, eu caguei pro rótulo!

Marcelo Fonseca/Folhapress

Fórum – Ney, o seu livro de memórias, que você vai discutir no CCBB, no Rio de Janeiro, serviu de inspiração para o filme do Esmir Filho, "Homem com H"...

Ney Matogrosso – Uma parte dele...

Fórum – Serviu de inspiração...

Ney Matogrosso – Talvez inspiração mais do que informação.

Fórum – O trailer do filme, que eu gostei muito, mostra os conflitos da sua relação com o seu pai e a maneira como, durante a ditadura, você enfrentou os vários conservadorismos e autoritarismos em torno da música e da sexualidade. Qual sua expectativa pro filme? Acredita que pode atingir os mais jovens, que ainda não conhecem o seu trabalho?

Ney Matogrosso – Sim, o filme é muito bem feito. O Festival de Berlim ficou interessadíssimo, e o Festival de Berlim é um dos mais transgressores. Por isso, eu fiquei todo eufórico, pois é um filme que atende às necessidades de um festival transgressor.

Fórum – Também impressiona a atuação do Jesuíta Barbosa.

Ney Matogrosso – Sim, maravilhoso. Mas também o bichinho penou, tá?

Fórum – Ah, é?

Ney Matogrosso – Trabalhou feito um animalzinho [risadas].

Fórum – Você se encontrou com o Jesuíta, Ney?

Ney Matogrosso – Estive [com ele] antes de começar o filme. Nós nos encontramos umas três vezes. Ele veio à minha casa e foi assim.

Fórum – Ney, como é a experiência de ver alguém interpretando você?

Ney Matogrosso – Olha, agora doeu menos... no filme. No teatro me incomodou mais.

Fórum – O que te incomodou?

Ney Matogrosso – Sabe o que me incomodou no teatro? Porque eu fui lá, conversei com eles e disse assim: “Olha aqui, gente, eu não sou o personagem. Então, prestem atenção que tem o personagem e tem a pessoa. A pessoa e a personagem, eu não sou assim na vida real”.

Fórum – E a peça não respeitou isso?

Ney Matogrosso – Eu não sei se a peça não respeitou, se os atores também começam a ficar livres e eles vão interpretando na maneira deles. No cinema é tudo mais controlado.

Fórum – Entendi.

Ney Matogrosso – Eu não vou controlar nada, tá?

Fórum – Claro, entendi o seu ponto! Ney, você pegou muitos momentos da indústria da música. Eu vi uma entrevista com o Ivan Lins, na TV Cultura, onde ele relata que perdeu a sua aposentadoria com a ascensão do streaming de música. E pra você, como está essa situação?

Ney Matogrosso – Olha, eu não vivo disso [streaming], felizmente. Já vivi de direitos autorais e com dinheiro de venda de discos. Hoje isso não existe mais. Eu recebo miséria... graças a Deus que eu não dependo disso, eu vivo de shows. Trabalho muito, mas eu vivo dignamente. Não vendi a minha dignidade.

Fórum – O que me chocou é que o Ivan Lins é um dos maiores compositores do Brasil...

Ney Matogrosso – Veja você o tamanho do absurdo disso.

Fórum – No programa, se eu não estiver enganado, foi no Provocações, que agora é apresentado pelo Marcelo Tas. O Ivan Lins disse que perdeu a aposentadoria... você poderia parar hoje, Ney?

Ney Matogrosso – Olha, eu não paro, porque eu não quero. Quando eu tinha os meus direitos de disco, quando a indústria fonográfica existia, eu vivia bem. Mas se eu fosse depender dessa indústria fonográfica [streaming], eu estaria na miséria. Durma com um barulho desse.

Fórum – Na entrevista, o Ivan Lins revelou que, para ter um ganho decente com streaming, é necessário que as músicas sejam reproduzidas milhares de vezes.

Ney Matogrosso – E a rádio também não toca mais essas músicas. Só toca coisa mais superficial... Não estou falando mal de nada, tá?

Fórum – Eu entendi o seu ponto...

Ney Matogrosso – ... Tudo existe e tem espaço para tudo. Mas aquelas coisas de coerência e profundidade, isso não existe mais. Dias desses eu escutei uma que dizia "não sei o quê/ a sua buc*tinha"... gente, meu Deus do céu, virou isso? Eu estava ouvindo umas músicas e, de repente, entrou uma coisa assim.

Fórum – Pegando essa questão da sexualidade e a música, você é um pioneiro nessa questão...

Ney Matogrosso – ... Talvez eu não seja um pioneiro, talvez eu tenha sido o primeiro a dizer a verdade.

Fórum – Você enxerga eco do seu trabalho na música brasileira atual?

Ney Matogrosso – Não, eco do meu trabalho, não, mas eco da minha pessoa. Eu não fico julgando os artistas, mas eu acho o seguinte: eu trouxe uma abertura para um assunto que não existia.

 

SERVIÇO: 

Clube de Leitura CCBB 2025 - Ney Matogrosso

Encontro presencial - 9 de abril de 2025

Horário: 17h30

Evento gratuito 

Classificação indicativa: Livre

Ingressos disponíveis na bilheteria do CCBB ou pelo site bb.com.br/cultura a partir das 9h do dia do encontro. 

Endereço: Centro Cultura Banco do Brasil - Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro - Biblioteca Banco do Brasil - 5º andar

Contato: 21 - 3808-2020 - ccbbrio@bb.com.br
 

Reporte Error
Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar