A falta de direitos plenos ainda é uma realidade para os trabalhadores da arte e da cultura no Brasil. O cotidiano da categoria é marcado por precarização, insegurança trabalhista e previdenciária, além da cultura do assédio, da tentativa de silenciamento e da incerteza sobre o futuro na arte. É o que revela o relatório divulgado pela Associação Cultural Nonada Jornalismo, a partir dos dados do Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística (MOBILE).
A pesquisa, conduzida entre novembro de 2024 e fevereiro deste ano, traz a percepção de artistas independentes em relação ao trabalho e liberdade artística no país. Para os entrevistados, o trabalho na arte no país ainda enfrenta muitos obstáculos devido à desinformação e politização do funcionamento do setor cultural e os ataques de ódio promovidos aos trabalhadores da cultura.
Desinformação e os ataques à cultura foram apontados por 75% dos artistas, o mesmo percentual apontado para a influência da ideologia política (75%). O machismo e a misoginia também foram destacados pelos entrevistados (71,2%), assim como o racismo (53,8%), a LGBTQIA+fobia (48,1%) e a burocracia excessiva (48,1%). Também surgiram menções pontuais à religião, sexualidade e à lógica capitalista. Veja:
Em relação aos ataques, 44% dos artistas relataram ter sido vítimas de algum tipo de violência, como ataques, intimidações ou censura. Pelo menos 13% afirmaram conhecer alguém que passou por situações semelhantes, enquanto 42,3% disseram já ter sofrido esse tipo de violência e também conhecer outra pessoa que enfrentou cerceamento ou autocerceamento para se proteger.
Os casos mais frequentes foram censura e assédio moral, com 40 ocorrências cada, seguidos por discurso de ódio (35), ameaças ou coerção (32), desinformação (30) e dificuldades financeiras ou burocráticas (29). Outras formas de violência relatadas incluíram agressão física (8), assédio sexual (7) e processos judiciais (5).
O estudo trouxe alguns relatos de artistas de diferentes regiões que vivenciaram esses casos.
“Fui convidada para pintar pela empresa responsável pela reforma da pista mais antiga de skate justamente com a justificativa de ter representatividade feminina (5 artistas homens x 2 mulheres). Me foi dada total liberdade e a fachada da pista. Pintei uma homenagem a skatistas mulheres e na escada escrevi "Quando uma mulher avança, nenhum homem retrocede". A apenas 1 dia da inauguração oficial, sem aviso ou pedido de desculpas até hoje, os próprios contratantes apagaram a mensagem da escada, justificando a outras pessoas presentes na hora da censura que essa frase "era política demais e que o skate já era um rolê inclusivo" provando justamente o contrário. Acabei fazendo protestos e até uma exposição sobre o assunto. Ninguém da empresa contratante nem da prefeitura de Curitiba se pronunciou sobre o caso”
“Como mulher em diversas ocasiões fui silenciada. Dos modos mais simples com ‘cala boca’, aos mais sofisticados (quando a articulação é tão nojenta que a gente se revolta e sai como louca). Misoginia é mato no interior.” Confira todos os relatos.
'A arte é mais que uma forma de expressão'
As censuras e violências simbólicas, psicológicas e físicas aos trabalhadores da cultura são resultado de um governo que agiu quatro anos contra as leis de incentivo ao setor cultural e de um país com histórico de golpes, de acordo com o relatório. Ataques à Lei Rouanet, Aldir Blanc e Paulo Gustavo ainda são frequentes entre bolsonaristas e grupos ligados à extrema direita.
Uma reportagem da Fórum mostrou em outubro de 2024 a investida do governo Nunes contra coletivos culturais periféricos de Sao Paulo. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) decidiu que todos os grupos artísticos periféricos prejudicados pela desclassificação arbitrária no edital da Lei Paulo Gustavo em 2024 sejam reintegrados ao programa.
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Para a pesquisadora brasileira, doutoranda em História, Crítica e Teoria da Arte pela ECA/USP, Juliana Proenço, é importante refletir as opressões à arte no Brasil considerando o passado histórico do país e o presente. “Eles são comparáveis de alguma forma, de maneira nenhuma equiparáveis, já que são contextos diferentes, mas talvez seja interessante pensar como essa repetição de casos e o medo que ela cria. Pode ser uma estratégia válida para entender essa aproximação anacrônica, para entender essas especificidades do presente também, com a qual a gente está vivendo já há alguns anos e que não parece que vai parar tão cedo, e a partir disso pensar em estratégias para o futuro.”
A arte é mais do que abstração, é luta e vivência para o artista Alessandro Zagato. “Em muitas regiões do mundo, a arte não é apenas vista como uma forma de expressão, podemos dizer, mas também como um ato de resistência que desafia as narrativas dominantes e também os poderes. A arte também é e foi, historicamente, uma ferramenta fundamental ou, simbolicamente, muito forte nas lutas sociais”, descreve.
O cenário da liberdade artística caiu drasticamente nos últimos anos. “Na América Latina, a repressão contra artistas nos últimos anos alcançou níveis alarmantes em países como, por exemplo, Nicarágua e Venezuela, onde a censura, a repressão contra os artistas e os criadores se tornou uma política de Estado. No México, que é o contexto onde eu vivo e opero, os assassinatos e o desaparecimento forçado de jornalistas e artistas evidenciam que a violência impune exercida tanto pelo crime organizado quanto pelas autoridades, está presente mais do que nunca”.
O estudo destaca a dificuldade em reunir dados que sustentem uma política ou estratégia mais estruturada para enfrentar a censura no Brasil, desafio que o Observatório de Censura à Arte e a Nonada têm trabalhado para superar nos últimos anos.
A plataforma criada permite registrar casos de censura a artistas desde 2017, identificando responsáveis e locais afetados. Desde então, tem sido fonte para pesquisas e reportagens em diversos meios de comunicação. Os pesquisadores afirmam que o estudo inédito busca trazer à público problemas recorrentes enfrentados por artistas de diferentes espectros culturais em diferentes tempos.
“Buscamos ampliar o projeto, indo além da censura direta (ou seja, da destruição, impedimento, cancelamento ou alteração de produções culturais) para identificar a percepção dos trabalhadores da arte sobre outras formas de violência e qual a avaliação deles, delas e delus sobre o futuro da liberdade artística no Brasil”, pontuam.
“Calar as vozes de artistas que utilizam a linguagem como ferramenta de luta é também calar a própria luta"