“É tão estranho. Os bons morrem jovens. Assim parece ser”. (Renato Russo)
Cazuza dizia que os seus heróis haviam morrido de overdose e que seus inimigos estavam no poder. Os inimigos dele (e os nossos, alô Trump!) continuam no poder. Contudo, nos anos 1980 e 1990 muitos dos nossos morreram em decorrência das complicações da infecção por HIV. Naquela época não existiam os antirretrovirais que vem salvando milhares de vidas nas últimas duas décadas.
A geração que nasceu nos anos 1970 e 1980 adolesceu ouvindo Renato Russo. Curtimos o rock ainda meio punk do primeiro disco em 1984 e perguntávamos para todos que país é este.
Ainda sem resposta, cantamos o idílio familiar de Eduardo e Mônica, ao mesmo tempo em que percebemos um mundo doente - quase sem índios - no espelho. Nas fábricas ou nas covas dos leões, não sacávamos nada de química, literatura ou gramática. Mas, afinal, se João de Santo Cristo não se deu bem indo à Brasília para falar com o presidente, por que não cortar os cabelos do príncipe e entregá-los a um deus plebeu?
A década de 1980 foi marcada por esse som. Cantando a si mesmo e ao país, Renato Russo tornou-se uma espécie de guru da geração que ele batizou de coca-cola. E nesses dias de poeira pelos cantos e bombas sobre as cabeças, com nossos amigos todos procurando emprego ou trabalhando precarizados, Renato Russo fez crítica social, cantou amores, angústias, descomplicou um pouco o mundo e tentou espantar vampiros do teatro.
Sem ser esteticamente sofisticado como Cazuza - o poeta maior dessa geração - Renato transbordava na e com a força de sua interpretação dramática, pungente, dura ou delicada, levando a outro patamar as letras (muitas vezes singelas ) das canções.
Sete discos da Legião Urbana (além de algumas coletâneas). Dois discos-solo. Em várias entrevistas Renato contava de seu problema com a heroína e com o abuso de álcool. Nos últimos anos de vida parecia ter superado a fase mais crítica da dependência química. Mas, infelizmente, não deu tempo.
Deslocado eu-no-mundo, típico herói romântico, era um estrangeiro, que ironicamente celebrava a estupidez de todas as nações. Solidário e solitário, sentia a água muito limpa para se beber. Panfletário ou metafórico, banal ou épico, ingênuo ou filosófico, conseguiu atingir a juventude em sua época: era um ícone do pop-rock.
Em 1989, assumiu sua homossexualidade e parecia viver mais tranquilo consigo. Seus dois discos sem a Legião, The Stonewall Celebration Concert (meu favorito entre todos) e Equilíbrio Distante cantados em inglês e italiano respectivamente , são coletâneas de canções românticas (mas não piegas), interpretadas de maneira pungente, que tratam de frustrações, angústias amorosas, despedidas, rupturas e sexualidade.
Renato Russo morreu em decorrência de complicações relacionadas à AIDS, surpreendendo o país, que não sabia da doença, em 11 de outubro de 1996. Tristemente, morreu no mesmo ano do surgimento da hoje famosa terapia de combinação de antirretrovirais, ou coquetéis, que envolvem a administração de múltiplos medicamentos com diferentes mecanismos de ação para controlar a infecção pelo HIV e puseram fim à era mais terrível da AIDS no Brasil - que sempre teve o melhor programa público do mundo de enfrentamento à epidemia com assistência médica e distribuição gratuita de medicamentos.
O último disco da Legião Urbana, Tempestade é down e soa como um canto de despedida.
Intérprete, gay, músico, poeta e feio. Ele foi e ficou, com vinte e nove anjos e diamantes em pedaços de vidro.
Talvez Renato esteja mais perto para pedir que os cordeiros de deus deem-nos a paz. Será? Assim parece ser. Feliz aniversário Renato Russo.. (ainda é cedo, cedo, cedo!!!).