Em 1983, durante a 7ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, os cineastas José Antonio Garcia (1955-2005) e Ícaro Martins estrearam uma comédia erótica sobre o futebol feminino, que havia acabado de ser legalizado. Para a surpresa da dupla, o filme foi censurado pela ditadura civil-militar, que impediu o lançamento do longa-metragem, destino diferente de muitas das outras chamadas “pornochanchadas” da Boca do Lixo, polo do cinema independente no centro de São Paulo. A exibição nos cinemas foi proibida na íntegra por sua “temática contrária à moral, aos bons costumes, ao decoro público”. 41 anos depois, o longa-metragem estreia no circuito comercial em 4K.
Com Carla Camurati e Cristina Mutarelli, “Onda Nova” enfoca um time de futebol feminino, o Gayvotas Futebol Clube, e os dramas, romances e anseios de suas integrantes. O longa-metragem tem sexo, nudez, protagonistas LGBTQIAP+, e traz participações icônicas de Caetano Veloso, Regina Casé e Casagrande, na época, jogador do Corinthians. Aos olhos da ditadura, o longa-metragem, livre de tantas amarras sociais, provou-se ousado demais para a época.
A Revista Fórum obteve acesso ao documento da censura na íntegra. “Não encontramos nenhuma mensagem positiva na obra examinada que se resume em apresentar apologias de bissexualismo, amor-livre, comportamento sexual irresponsável, e outras atitudes socialmente reprováveis”, concluiu um dos pareceres. “As perspectivas censórias cabe ver que o filme é uma correnteza traidora a levar a mentalidade das platéias para o recife escondido do desânimo. É de se manter aceso o sinal vermelho para os filmes dessa laia”, escreveu outro censor.
O diretor Ícaro Martins lembra a surpresa de ter o filme censurado. “A Censura era muito organizada burocraticamente. Um filme não era visto por uma só pessoa, era sempre visto por mais de uma comissão”, explica. “Onda Nova”, entretanto, recebeu três classificações indicativas diferentes, apenas uma pedindo a proibição do filme, e precisou passar por uma outra avaliação, o chamado “desempate”. Foi aí que o filme teria caído no colo da temida Solange Hernandes, diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) e considerada a “dama da tesoura”, por sua postura rígida e intransigente nas análises. “Ela resolveu assistir ao filme e saiu da sala dizendo que era completamente amoral e tinha que ser interditado”, conta o cineasta, que ouviu a história de um contato dentro do departamento de censura.
Martins compara a proibição que “Onda Nova” sofreu nas mãos de Hernandes com as práticas do governo Bolsonaro contra o setor audiovisual. “A Censura, bem ou mal, ela era institucional, ela era conhecida, ela tinha a regra, tinha procedimentos, você podia recorrer”, explica. “O que aconteceu de 2018 a 2022 é que, por exemplo, vários projetos de filmes, eles simplesmente não andavam para frente, porque era uma censura informal que acontecia. Então, assim, em certo sentido, isso é tão ruim ou pior do que o outro tipo de censura.”
Embora a DCDP esteja extinta, é difícil imaginar um filme como “Onda Nova” sendo produzido nos dias de hoje, pelo conservadorismo referente ao sexo no cinema - vide a repercussão negativa de parte da sociedade pela vitória de “Anora” no Oscar, por exemplo. Questionado sobre um retorno do moralismo nas artes, Martins acredita que ele está presente na sociedade como um todo. “Não diria que nas artes em abstrato. Na sociedade, sim, porque, na verdade, esse moralismo vem junto com o neoliberalismo”, explica, citando “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de Max Weber. “A obsessão por austeridade, a acumulação, o dogmatismo, o proselitismo de uma moral econômica e de costumes que sempre caminharam juntos: são os dois lados de uma moeda só, o ultraconservadorismo e o neoliberalismo”.
Helena Garcia, filha de José Antonio Garcia, foi responsável por criar o cartaz do relançamento, com elementos do original, mas precisou ser mais conservadora na releitura. “O cartaz original tinha a foto da Carla na piscina, com o seio de fora. Hoje, não podemos ter esse cartaz na internet por conta da censura”, reflete. “A gente não consegue exibir o cartaz mostrando um peito, uma mulher mostrando um peito”. Ela critica: “Então, as pessoas preferem que o seio esteja coberto. Um exemplo prático, um detalhe que mostra um todo, né?”
O momento, entretanto, é propício para a discussão: o Brasil acaba de ganhar o Oscar por um filme que denuncia a ditadura civil-militar. Irmã de Helena, Zita Garcia acredita que a coincidência da estreia de “Onda Nova” com o sucesso de “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, é pertinente para a discussão sobre os anos de chumbo. “Recentemente, a gente também passou por governos mais fascistas, a gente está encaretando nesse sentido”, explica. “Então, [com a estreia dos filmes] a gente vai relembrar essa época horrorosa que a gente viveu; tudo isso que eles sofreram, meu pai e o Ícaro… Todo mundo que fazia produções artísticas ou, enfim, qualquer ideia e liberdade de se posicionar, tudo era ceifado”.
Nesse contexto, “Onda Nova”, 41 anos depois, continua mais do que atual. “É porque os problemas do Brasil continuam os mesmos”, explica o diretor. “O filme tem uma voz diferente, uma entonação diferente, mas o surpreendente é que os problemas continuem os mesmos. O filme deixa de ser histórico e vira atual”. Para Helena, o longa-metragem está tendo uma boa recepção do público nas sessões e festivais em que foi exibido antes da estreia, marcada para 27 de março. “‘Onda Nova’ celebra a liberdade com alegria e leveza, algo que hoje em dia não vemos tanto. Isso é um ponto positivo que encanta os jovens”, conclui.
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