BRASILIDADE

"Você não entende Milton, você sente", diz diretora sobre documentário inédito de Bituca

Flávia Moraes e Victor Pozas contam sobre longa que será lançado esse mês, um retrato histórico de um músico que compõe sobre e pelo povo brasileiro, em busca de reparação: “Não é só um artista gigante, é o Brasil profundo"

Milton Nascimento.Créditos: Divulgação
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Mesmo com um legado reconhecido por artistas do mundo todo e pelo público, Milton Nascimento nunca se afastou da busca pelo que é popular e pela cultura popular e, em muitos casos, colocado à margem. Não é modéstia, mas conhecimento.

Em mais de seis décadas de carreira, Bituca - apelido de infância do artista - encontrou o Brasil e a si próprio, imergindo nas riquezas da cultura e da história brasileira para inspirar sua música e eternizar as marcas do povo e do passado brasileiros, mantendo um olhar atento ao momento presente e ao que está por vir. Sem se colocar à parte de quem conviveu, mas como parte da história.

O documentário “Milton Bituca Nascimento” narrado por Fernanda Montenegro, estreia nos cinemas brasileiros no dia 20 de março e apresenta um retrato histórico e preciso de um mestre ainda indecifrável e que dispensa rótulos. A trama gira em torno de seu último show, em novembro de 2022, quando se despediu dos palcos pela primeira vez.

Assistida com exclusividade pela Fórum, a produção convida o público a refletir sobre uma questão que parece óbvia, mas profunda: o que torna Bituca uma figura tão fascinante no Brasil? Como suas músicas conseguem criar conexões tão intensas com brasileiros de todas as idades e origens, ao mesmo tempo em que inspira estudos acadêmicos e é tema de aulas em universidades?

Recentemente tivemos o desprazer de ver Bituca ser excluído do Grammy e um protesto sensato de Esperanza Spalding por sua presença, mas, como o próprio já cantou: "Sou da América do Sul! Sei, vocês não vão saber". Milton Nascimento não faz questão de aplausos norte-americanos — sua grandiosidade fala por si e a brasilidade segue transcendendo premiações eurocêntricas. E todos sentimos isso.

O documentário aprofunda exatamente esse sentimento e a potência da nossa cultura atravessada por Milton, que nos coloca com maestria para além do “complexo vira-lata”, desvelando a identidade brasileira. A reportagem conversou com a diretora do documentário, Flávia Moraes — cineasta, produtora, montadora e showrunner —, que esteve à frente de uma das maiores produtoras da América do Sul.

Para ela, a sensação de gravar e acompanhar Milton por dois anos e transformar sua longa estrada em filme foi acima de tudo desafiadora. “As mais diversas e contraditórias sensações me vêm à memória. Além do privilégio, vivi a alegria, a angústia, a responsabilidade… A adrenalina da criação, a expectativa e a frustração também são parte do processo. Mas sempre, durante todo o caminho, éramos amparados pela emoção que sua música e sua arte geram”, afirma Moraes, que reuniu seus anos de experiência para enfrentar um projeto único.

Flávia Moraes e Milton  Nascimento nas gravações. Foto: Divulgação

“Tivemos longas conversas, fiz pedidos difíceis, e Milton sempre esteve presente, generoso. Nunca tentou controlar o retrato que fazíamos dele, nunca pediu para cortar ou mudar nada. Me senti livre, respeitada. E isso, claro, só aumentou minha responsabilidade [...] Ele me olhou e devolveu com um sorriso: 'vai dar muito trabalho?'. Respondi que sim. Que só poderíamos fazer um filme à altura dele se fôssemos parceiros. E ele disse: ‘então vamos fazer!’."

Ela também contou à Fórum as reflexões de Bituca ao assistir ao primeiro corte. “O filme tinha, então, 2h20. Foram as duas mais longas que já vivi. Quando terminou, Milton me olhou em silêncio e pediu pra ser levado para o quarto. Olhei pro Augusto [filho de Milton] que, percebendo minha angústia, me disse ‘fica tranquila’. Então alguém veio me chamar: o Bituca queria falar comigo. Sentei do seu lado e perguntei ‘e então?’. Ele me olhou e disse: ‘PUT*******!’, espichando as sílabas”, brincou a diretora ao lembrar. O jeito Bituca.

“Depois, pegou minha mão, colocou sobre seu peito e falou ‘você mexeu com tudo aqui dentro!’ e me agradeceu. Era só o que eu queria ouvir. Fizemos esse filme para ele.”

Ecos e voz como expressão: o instrumento musical

Foi em Três Pontas que Milton Nascimento se inspirou nas paisagens e tradições de Minas Gerais. A cidade, cercada pelas montanhas, lhe trouxe a riqueza cultural imortalizada em elementos do folclore, como os corais, os sinos, o som do trem e a Folia de Reis, que mais tarde se tornaram marcas indissociáveis das suas músicas.

Ali Bituca encontrou a verdadeira essência da música, dando voz a um canto que ecoava nas montanhas ao seu redor: o eco. O brasileiro, que começou a cantar as notas além do alcance de sua sanfona, transformou-se no "rouxinol" mineiro. Sua voz, comparada por Tom Jobim à de um jaguar, eternizou-se como um dos maiores legados da música brasileira. Em um poema, Jobim chegou a chamar Milton de “meu carioca mineiro”. Ele nasceu no Rio de Janeiro.

Ao longo de toda a produção, é essa voz inconfundível que nos guia entres silêncios, e representada pelos ecos, conversas cotidianas transformadas em sons e por uma narração singular, além dos depoimentos de artistas nacionais e internacionais, como Caetano Veloso, Chico Buarque, Djavan, Spike Lee, Quincy Jones e Djamila Ribeiro.

Esperanza Spalding e Milton Nascimento. Foto: Divulgação

Por meio de suas músicas, Milton traduzia o ambiente ao seu redor, suas experiências e as questões políticas do Brasil, e, ao mesmo tempo, criava um percurso próprio. Como a própria diretora pontua: 

“É preciso ler Guimarães e ouvir atentamente as entrevistas de João Bosco, Caetano, Gil, Pat Metheny… E ainda assim você não entende o Milton – você sente”

Milton Nascimento se baseia no Brasil e faz pelo Brasil. Foto: Divulgação

À Fórum, o diretor musical do documentário Victor Pozas comenta que o próprio músico foi a inspiração e que não seguiu um roteiro prévio para trilha sonora. “Ele foi acontecendo, se moldando organicamente à medida que as entrevistas surgiam, muitas delas de forma espontânea.”

Confira a seguir, as entrevistas completas com Flávia Moraes (FM) e Victor Pozas (VP):

Fórum - O Milton realmente é um Brasil profundo, o país que está à nossa frente, mas que muitas vezes não paramos para observar, embora como brasileiros sintamos. O documentário não se limita a retratar o músico apenas em um palco como um ídolo como muitos filmes fazem, mas também revela o homem por trás da música, a sua essência e sua conexão com o povo brasileiro, que dá um toque muito real e sensível e transcende o nosso entendimento sobre a própria música, a arte e a realidade. Como foi trabalhar essa filosofia?

FM: Fazer um filme sobre Milton e acompanhá-lo na estrada nos fez ter que olhar para o Brasil e fazer um filme sobre o Brasil. E assim como o Brasil que, quando visto de fora, é muito maior, com Milton acontece o mesmo. E nada melhor do que tomar distância para ter a perspectiva do total.

Fórum - Para quem ainda não conhece o Bituca, sinto que o documentário também reproduz bem o que ele representa para a nossa cultura e para o país, e servirá até mesmo de algum material pedagógico. Nessa ideia que você trabalhou durante toda a produção e estando tão pertinho do Bituca, você conseguiria hoje explicar por que Milton atinge diferentes gerações e seguirá nos provocando tanta reflexão?

FM: Seguimos um conceito muito claro de que Milton é o Brasil – de que ele representa o Brasil Profundo como poucos artistas. O filme poderia perfeitamente se chamar Milton Brasileiro Nascimento. Não só sua música, mas toda sua história, tudo o que viveu desde a infância até o show de encerramento da turnê no Mineirão é um grande espelho: a gente se vê nele. Um retrato do Brasil, país indecifrável que a gente ama, mas não consegue explicar. Não passa pelo racional. É preciso ler Guimarães e ouvir atentamente as entrevistas de João Bosco, Caetano, Gil, Pat Metheny… E ainda assim você não entende o Milton – você sente.

Fórum - Ao trazer o depoimento de 40 personalidades da música brasileira e internacional, como o Gilberto Gil, o Mano Brown, a Djamila Ribeiro, o Quincy Jones, o Spike Lee e o Paul Simon, cada um deles oferecendo uma perspectiva única sobre o Milton Nascimento e o impacto de sua música no mundo, você esperava ouvir tantas opiniões diferentes e ao mesmo tempo profundamente significativas? Como eles ajudaram a construir essa narrativa?

FM: Quando você planeja um documentário, geralmente parte de uma ideia inicial – um pré roteiro, como se você tivesse um mapa. Quando começa rodar e, principalmente, se aprofundar no seu assunto, uma variedade de novos caminhos se abrem e você precisa fazer escolhas, assumir riscos e, às vezes, até abandonar a direção inicial para seguir outras. Nesse filme, porém, todas as estradas nos levavam para o mesmo lugar.

As entrevistas foram, sem dúvida, peças de um quebra-cabeças, mas que se encaixavam de forma quase milagrosa. Vozes diversas e muitas vezes distantes no tempo e espaço, que terminam formando um coro. Às vezes sinto que, apesar de toda sua complexidade, esse filme já estava pronto antes de começar.

Fórum - A arte em suas diversas formas tem esse poder divino de provocar e nos fazer refletir de forma muito real o que é a vida e o nosso sentido de estar aqui. Sinto que os documentários brasileiros têm ajudado cada vez mais na formação de uma imagem cultural potente do Brasil no exterior. Como diretora, você acredita que as produções brasileiras contribuem mais para desconstruir padrões e reforçar perspectivas decoloniais, ao mesmo tempo em que reafirmam nossa identidade cultural?

FM: Há um trecho do texto escrito por Marcelo Ferla, co-roteirista do doc, e narrado luxuosamente pela Fernanda Montenegro que diz assim:

“…Por que a gente faz música? Por que a gente pinta? Por que faz filme? Porque a arte é revolucionária e, nesse tempo binário em que até a inteligência é artificial, saber o quanto um artista preto brasileiro conseguiu tocar o mundo é o que nos move e nos dá razões de acreditar no poder do povo deste país indecifrável, mas que tem alma.”

Acho muito representativo o momento do nosso cinema e das artes em geral. Ao que parece os anos de Bolsonaro foram tão medievais para a Cultura que agora estamos vivendo uma espécie de Renascimento.

Veja o que está acontecendo com “Ainda Estou Aqui”, com “O Último Azul”, com a arte brasileira ganhando espaço em museus como o Tate… Arrisco dizer que se não retrocedermos e não deixarmos a polarização que ainda nos divide nos levar para o mesmo caminho dos Estados Unidos, podemos virar um case de democracia. E isso é quase cômico e tão indecifrável como Milton.

Fórum - Colocar Milton Nascimento como parte da história da Música é genial, representa à altura todo o talento que o Bituca nos oferece e essa simplicidade complexa e compreensível que é inexplicável. Como foi trabalhar essa ideia ao longo do documentário e ao lado de Milton?

VP: Com certeza, Bituca, o mestre Milton Nascimento, merece todas as homenagens possíveis! Sua música transcende gêneros, fronteiras e gerações, deixando uma marca profunda na arte e na vida de muitos artistas – e de milhões de pessoas. A influência dele no som de gigantes como Ivan Lins, Djavan, Pat Metheny, Wayne Shorter e tantos outros é inegável. Ele não só ajudou a moldar a MPB, mas também redefiniu o diálogo entre a música brasileira e o mundo.

Fórum - A combinação de ecos e sons com as falas do Bituca em algumas partes do documentário, mesmo incomum, ficou muito interessante! É como se entrasse em harmonia com a própria narração. E eu também pude entender a composição do Milton e todo esse pensamento em torno da Música de forma mais acessível, mesmo não tendo muito conhecimento da área. De onde veio tanta inspiração para essa produção?

VP: O próprio Bituca é a inspiração. Livros sobre sua trajetória, inúmeros shows, vídeos, programas de TV e tantas outras referências ajudaram nessa pesquisa. Mas, acima de tudo, sua essência – um ser único vindo do Brasil profundo – naturalmente nos levou a esse resultado. O documentário não seguiu um roteiro prévio; ele foi acontecendo, se moldando organicamente à medida que as entrevistas surgiam, muitas delas de forma espontânea.

Fórum - Como diretor musical, como você definiria a essência das músicas de Milton Nascimento? Quais elementos sonoros e poéticos que o torna único?

VP: Eu e Rafael Langoni, como diretores musicais, temos plena consciência da magnitude e da riqueza da obra de Bituca, considerado o brasileiro mais importante da música após Jobim. Sua genialidade é única – harmonias inusitadas, diferentes, profundamente sofisticadas, e melodias de uma beleza ímpar. Sua música não apenas emociona, mas redefine os caminhos da arte.

Assista ao trailer

Clube da Esquina para as esquinas do mundo

O clássico álbum de Milton Nascimento e Lô Borges,‘Clube da Esquina’ (1972), liderou no ano passado o ranking brasileiro dos melhores álbuns de todos os tempos, na nona posição, da revista norte-americana Paste Magazine. Stevie Wonder, com ‘Songs in the Key of Life’ (1976), está em primeiro lugar. "Com 64 minutos de duração, o álbum duplo nunca perde seu brilho”, declarou a revista americana de música e entretenimento ao definir o álbum brasileiro.

"Do começo ao fim, as notas e sons notáveis de Nascimento e Borges, que viam a música clássica e pop como iguais, que imploravam para ser eternizadas juntas em canções, fazem de ‘Clube da Esquina’ o maior álbum brasileiro de todos os tempos."

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