LITERATURA E RESISTÊNCIA

Cem Anos de Solidão: obra citada por Petro para rebater Trump traduz essência da América Latina

Ímpetos expansionistas e retaliações do republicano foram rebatidos com cultura latina; livro desmonta narrativa de colonizadores e redesenha continente para além da solidão

Cem Anos de Solidão a Trump: obra essência da América Latina desmonta narrativa de colonizadores.Créditos: Divulgação
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O presidente da Colômbia Gustavo Petro compartilhou uma grande mensagem endereçada a Donald Trump neste domingo (26) abordando a migração, os direitos humanos e a história das relações entre os dois países – uma aula de descolonização carregada de simbolismos. 

A declaração reafirma a posição da Colômbia contra as políticas de deportação que violam a dignidade de seus cidadãos, mas vai muito além disso: Petro lembra a potência latino-americana, como bem retratada na obra Cem Anos de Solidão, do escritor Gabriel Garcia Marquez. O fato ocorreu após Trump ameaçar impor tarifas de até 50% sobre produtos colombianos, além de sanções financeiras e restrições de visto para autoridades do país, em retaliação à recusa de Bogotá em aceitar voos militares transportando deportados colombianos.

O presidente neofascista expôs planos perversos de deportação de imigrantes afirmando que a América seria "grande novamente" nas últimas semanas. No Brasil, por exemplo, brasileiros chegaram acorrentados em aviões e com marcas de violência cometidas por seguranças e policiais estadunidenses.

Em meio às políticas extremistas de Trump, Gustavo Petro decidiu enfrentá-lo e, na mensagem, destacou que a Colômbia é terra de “borboletas amarelas e da beleza de Remedios”, lembrando também que seu país é lugar de “coronéis Aurelianos Buendía, dos quais sou um deles, talvez o último”. Tratou-se de uma alusão direta a personagens de Cem Anos de Solidão. 

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A estratégia colombiana surtiu efeito. Horas após anunciar as sanções e receber a resposta contundente de Petro, a Casa Branca confirmou um acordo no qual a Colômbia aceitaria os deportados, mas com garantias de retorno digno. As sanções mais severas, como tarifas e bloqueios financeiros, foram suspensas, e o uso de aviões militares foi autorizado, mas com a vigilância do governo colombiano para assegurar que os cidadãos retornassem sem humilhações ou agressões.  “Superamos o impasse com o governo dos EUA”, declarou o ministro das Relações Exteriores da Colômbia, Luis Gilberto Murillo. 

Embora Trump tenha mantido algumas sanções, como restrições de visto a autoridades colombianas, a vitória diplomática de Petro é inegável. Ele conseguiu evitar um colapso comercial com os Estados Unidos, manteve sua postura firme em defesa dos direitos dos migrantes e colocou a Colômbia em uma posição de destaque no cenário internacional.

Alma e expressão simbólica da América Latina

Referenciado pelo presidente colombiano, Cem Anos de Solidão é um romance que revolucionou a literatura produzida no continente ao desafiar o eurocentrismo e apresentar ao mundo, pela primeira vez, um bestseller latino-americano; de forma simbólica, expressou as aspirações e as dores de um povo marcado pela opressão, colonização e marginalização; e que, entre alegorias, misticismos e duras realidades, conseguiu alçar a essência de toda a América Latina através da história da família Buendía, residente na cidade mítica Macondo.

Gabriel García Márquez vai contra a literatura de colonizadores, os "cronistas das Índias", que registraram as terras latino-americanas como “território descoberto” durante os séculos 15 e 16, e destacavam "belezas" e "exoticidade" que achavam existir. Com o livro, o escritor iniciou a "segunda descoberta da América" sob a visão dos colombianos, de quem era da América Latina, e contra a dominação europeia e daqueles que se consideravam superiores a outros povos.

Em seu estúdio na Cidade do México, com sua máquina de escrever, Gabriel García Márquez reimaginou a origem do continente, que seria um mundo, como apontou ao ganhar o Nobel da Literatura em 1982, “onde as raças condenadas a cem anos de solidão terão, finalmente e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra”.

“Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este é o cerne da nossa solidão”

Na segunda metade do século 20, quase toda a América Latina atravessou um período turbulento. Países como Chile, Colômbia e México e o próprio Brasil enfrentavam instabilidades, regimes ditatoriais e violência política, o que resultou em mudanças e revoluções, incluindo a Revolução Cubana, encabeçada por Fidel Castro e Ernesto Che Guevara. Em entrevista exclusiva à Fórum, o escritor cubano Leonardo Padura falou sobre a extrema direita hoje, que sob a bandeira do neoliberalismo, é uma das maiores responsáveis pelos males que assolam o mundo.

"Há uma ascensão da direita, uma direita cada vez mais radical, em muitos casos xenófoba, racista e fundamentalista e isso cria um perigo para todas as sociedades, todas elas"

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Nos primeiros momentos da escrita da obra, García Márquez se sentiu cativado pela transformação que Cuba vivenciava. O que mais o impressionou foi a chance real de uma nova ordem para os países do hemisfério, enfrentando a pressão e as imposições dos Estados Unidos. Intelectuais e filósofos de outros cantos do mundo, como Mario Vargas Llosa, Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Simone de Beauvoir,  também partilhavam da mesma causa.

Cem Anos de Solidão conta a saga da família Buendía ao longo de sete gerações, começando com a fundação da cidade fictícia de Macondo e seguindo até sua ascensão e eventual queda. Mesmo assim, ela merece ser discutida: embora seja uma criação inspirada nas memórias de infância de García Márquez, Macondo na história serve como uma representação crítica e política da Colômbia. As ditaduras, guerras, regimes políticos, a repressão, a vida militar e a miséria gerada por um governo ausente e submisso às grandes potências se refletem de maneira profunda nas palavras de García Márquez.

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