“Eu e meus filhos cansamos de dar murro em ponta de faca”. Foi com essa afirmação à revista Manchete, em novembro de 1978, que Eunice Paiva resumiu os esforços da família para descobrir o paradeiro de Rubens Paiva, o ex-deputado federal cassado e desaparecido político na época da ditadura militar.
A história da família Paiva, que expõe uma das várias mentiras contadas por militares sobre presos políticos e vítimas do regime, é retratada no filme 'Ainda Estou Aqui', adaptação da obra homônima do livro do jornalista Marcelo Rubens Paiva. O filme é cotado para levar o Oscar este ano após a conquista do Globo de Ouro por Fernanda Torres, que interpreta a ativista, e pela relevância nacional do assunto.
Um levantamento feito pela Fórum revela a trajetória de luta de Eunice na busca por documentos e obtenção de provas sobre o paradeiro de Rubens Paiva para refutar a farsa criada pela ditadura sobre o destino de seu marido. Militares e jornais alinhados ao regime mentiram sobre a prisão e o assassinato do deputado.
Prisão e mentiras de militares
Rubens Paiva foi retirado de sua casa no dia 20 de janeiro de 1971 por militares, supostamente para prestar depoimento, e nunca mais foi visto. No dia seguinte, Eunice e Eliana, uma das filhas do casal, também foram presas. Eliana foi libertada após o interrogatório, mas Eunice ficou detida por 12 dias. Apesar disso, as versões oficiais negavam a detenção da família Paiva.
Em um esforço para despistar as investigações, o Exército, o Dops e a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro negaram categoricamente, em 27 de janeiro, que Rubens Paiva estivesse sob sua custódia. A informação foi divulgada ao Jornal do Brasil. A imprensa, manipulada pela versão oficial, noticiou que o casal Paiva havia sido sequestrado por um grupo que se dizia ligado ao 1º Exército e, em seguida, resgatado por forças opostas ao regime militar.
Essa narrativa contraditória visava tirar de vista o envolvimento das forças de segurança na prisão e morte do ex-deputado. Mesmo sem documentos oficiais que comprovassem a prisão de Rubens Paiva, as evidências eram contundentes: seus pertences pessoais foram entregues a militares durante sua detenção e posteriormente devolvidos à família, o seu veículo ficou sob custódia do quartel, uma testemunha ocular relatou sua prisão e agressões sofridas por ele, e habeas corpus foram impetrados e negados.
Para que tudo isso não fosse esquecido, Eunice Paiva se encarregou de registrar os eventos em uma carta que enviou ao Conselho de Direitos da Pessoa Humana em 20 de fevereiro de 1971. Um ano depois, Eunice Paiva concluiu o curso de Direito, munida de um propósito claro: desvendar o mistério em torno do desaparecimento de seu marido, provar e responsabilizar os culpados. (leia ao final da matéria a carta completa de Eunice).
“O próximo passo judicial para apurar as responsabilidades pelo desaparecimento do meu marido será muito bem estudado, para que ajude a conscientizar a sociedade”, prometeu, poucos meses após terminar a graduação. Em 1978, ela fez um relato:
“Tudo na vida tem uma razão de ser. A cerimônia do sepultamento, o luto e a missa de sétimo dia existem para convencer a gente de que a pessoa morreu. O mais difícil é aceitar que uma pessoa de quem você gosta morreu. Nós não tivemos isso. O Rubens saiu de casa ótimo, com a melhor saúde, não era diabético como agora dizem os jornais, e muito menos cardíaco. Era inclusive piloto. Depois da prisão ninguém falou que viu meu marido morto. Rubens era uma pessoa extremamente inteligente. Se nunca mais conseguiu mandar notícias, e já se passaram quase oito anos, é difícil admitir que esteja vivo”
Reconhecimento
Além da busca por justiça histórica, a família de Rubens Paiva enfrentava um impasse burocrático que impedia a venda de um apartamento que pertencia ao ex-deputado. Em 1981, Eunice Paiva, viúva de Rubens, solicitou à Vara da Família uma autorização judicial para alienar o imóvel, uma vez que a assinatura de seu marido desaparecido era exigida para a transação.
"O juiz responsável, Marcos Martins, não apenas concedeu a autorização, como proativamente encaminhou um ofício à Procuradoria da Justiça do Rio de Janeiro, solicitando a abertura de um inquérito para apurar o desaparecimento de Rubens Paiva", narra Marcelo Rubens Paiva em seu livro "Ainda estou aqui". A decisão judicial representou um marco importante na luta da família por reconhecimento e justiça.
"Ela comemorou muito. Alguém estava do nosso lado. Foi o começo do reconhecimento. E da sua viuvez jurídica", recorda Marcelo. A iniciativa do juiz Martins, ao exigir uma investigação formal, impulsionou o processo de busca pela verdade sobre o destino de Rubens Paiva e contribuiu para a pressão sobre as autoridades a fim de que se posicionassem sobre os casos de desaparecidos políticos.
A luta pela verdade sobre o desaparecimento de Rubens Paiva se prolongou por décadas, encontrando eco apenas em 1994 com a eleição de Fernando Henrique Cardoso para a Presidência da República.
Sob pressão de Eunice e Marcelo, o governo sancionou a Lei dos Desaparecidos em 1995, reconhecendo legalmente a morte de pessoas desaparecidas durante a ditadura. Em fevereiro de 1996, a família Paiva, enfim, recebeu a certidão de óbito de Rubens Paiva.
A incansável luta de Eunice Paiva por justiça finalmente começou a dar resultado em 2014, quando a Comissão Nacional da Verdade recuperou documentos que comprovaram a prisão e o assassinato de Rubens Paiva por agentes do Estado. Graças à sua persistência e à ação da Comissão, cinco militares foram indiciados pelo crime, mas o processo judicial ainda aguarda julgamento. O lançamento do filme "Ainda Estou Aqui" reacendeu a discussão sobre o desaparecimento de Rubens Paiva e impulsionou a reabertura do caso, que havia sido arquivado.
Filme inspira proposta de mudanças na Lei da Anistia
O filme "Ainda Estou Aqui" transcendeu as telas ao influenciar o debate jurídico e social no Brasil e ressaltar a importância de enfrentar as feridas do passado e buscar justiça para os crimes cometidos durante a ditadura. O Supremo Tribunal Federal (STF) está analisando a possibilidade de excluir da Lei da Anistia os crimes de ocultação de cadáver cometidos durante a ditadura militar.
O ministro Flávio Dino reconheceu no dia 15 de dezembro a repercussão geral de um recurso do Ministério Público Federal (MPF), que questiona a aplicação da anistia para crimes considerados permanentes, como a ocultação de restos mortais.
O caso envolve denúncias contra os ex-militares Sebastião Curió Rodrigues de Moura, conhecido como Major Curió, e Lício Augusto Ribeiro Maciel, acusados de envolvimento na Guerrilha do Araguaia. Ambos são apontados como responsáveis pela ocultação de cadáveres de opositores do regime. Apesar de rejeitada em instâncias inferiores, a denúncia do MPF foi levada ao STF, que agora analisa se a ocultação de cadáver, por sua natureza permanente, deve ser tratada fora do escopo da anistia.
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O discurso histórico de Rubens Paiva no dia do golpe
Durante a madrugada do início do golpe militar, no dia 1° de abril de 1964, o deputado fez um discurso histórico ao vivo na Rádio Nacional para convocar a sociedade brasileira a resistir ao golpe por meio de uma greve geral no país.
Rubens Paiva era deputado federal por São Paulo e um dos principais apoiadores do presidente João Goulart, que sofreu o golpe em 1964. Em 1967, Paiva teve seu mandato cassado e, em 1971, foi preso, torturado e morto pela ditadura militar por manter correspondência com exilados políticos brasileiros no Chile.
Em seu pronunciamento, o deputado se dirigiu, principalmente, aos trabalhadores e estudantes de São Paulo. Ele pediu para que todos se unissem contra ao "governo fascista e golpista" que, naquele momento, instaurava uma ditadura militar no país.
"Desejo conclamar todos os trabalhadores de São Paulo, todos os trabalhadores portuários e metalúrgicos da Baixada Santista, de Santos, da capital e das cidades industriais de São Paulo em especial. Todos os universitários se unam em torno de seus órgãos representativos, obedecendo à palavra de ordem do Comando Geral dos Trabalhadores, do Fórum Sindical de Debate, dos sindicatos, da União Nacional dos Estudantes, das uniões estaduais e dos grêmios estudantis, para que todos em greve geral deem a sua solidariedade integral à legalidade que ora representa o presidente João Goulart", disse o deputado em seu discurso.
"O nosso presidente, ao tomar as medidas tão reclamadas por todo o nosso povo, medidas que nos conduzirão indiscutivelmente a nossa emancipação política e econômica definitiva, realmente prejudicou os interesses de uma pequena minoria de nossa terra, pequena minoria, entretanto, que detém um grande poder, todo o poder econômico deste país, todos os órgãos de divulgação, os grandes jornais e as estações de televisão. É indispensável, portanto, que todo o povo brasileiro, os trabalhadores e os estudantes de São Paulo, em especial, estejam atentos às palavras de ordem que emanarem aqui da Rádio Nacional e de todas as outras rádios que estejam integradas nesta cadeia da legalidade", acrescentou.
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Outros feitos: Eunice Paiva é pioneira da causa indígena
Além de sua luta em defesa dos direitos humanos, Eunice Paiva também se destacou como uma das principais defensoras dos direitos dos povos indígenas no Brasil. Como advogada, atuou em diversas causas, combatendo a violência, a expropriação de terras e a violação dos direitos dessas comunidades.
Em 1983, em parceria com Manuela Carneiro da Cunha, escreveu o artigo "Defendam os pataxós", um marco na luta indígena que inspirou outros povos a defender seus direitos. Em 1987, fundou o Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (IAMA), que trabalhou por mais de uma década em prol da autonomia dos povos indígenas.
Seu profundo conhecimento sobre os direitos humanos e os direitos dos povos indígenas a levou a ser convidada para participar da Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Como consultora, contribuiu ativamente para a redação da Constituição Federal, que trouxe avanços significativos para a proteção dos direitos humanos no Brasil.
Leia abaixo a carta de Eunice Paiva endereçada ao Conselho de Direitos da Pessoa Humana em 20 de fevereiro de 1971 sobre o caso Rubens Paiva: