Através da perspectiva da tradição oral afro-brasileira e das comunidades ribeirinhas, 'Cinderela do rio', a mais nova obra da escritora Mafuane Oliveira, traz a versão brasileira do clássico da literatura infantil.
De acordo com Mafuane, 'Cinderela do rio' foi construído após anos de encantamento ouvindo sua avó baiana, Judite Maria de Jesus, contando histórias. A escritora juntou a isso a pesquisa de tradição oral da professora Dra. Edil Silva Costa da UNEB, que recolheu histórias populares de 'cinderelas' entre mulheres da Bahia, além de outras referências pessoais. Assim, Mafuane lapidou a jornada de Mariazinha, ribeirinha do Nordeste, separada de sua mãe e forçada a trabalhar na casa de sua madrinha, como muitas meninas e mulheres que dedicaram suas vidas ao trabalho doméstico como se fossem “quase da família”.
Para a escritora, é interessante poder recontar essas histórias já que ela mesma é também de uma família de mulheres baianas, trabalhadoras domésticas, rurais, lavadeiras e cozinheiras que superaram abusos e se reinventaram de inúmeras formas para dar uma vida digna e encantada às suas filhas e filhos.
"Quando falamos sobre a ‘cultura popular brasileira’, não podemos esquecer que grande parte dela é originada das culturas indígenas e africanas. Então, eu estou recontando essas histórias a partir de um olhar oriundo dos valores civilizatórios afro-brasileiros, e essa oralidade não é para ser um resgate, não faz parte do olhar folclorizante e de distanciamento que muitas vezes a acadêmia e a indústria cultural impõem as culturas afro-ameríndias", afirma Mafuane.
"Isso é algo que está vivo, que faz parte realmente da nossa cultura e não está apenas no lugar do entretenimento. É uma metodologia de transmissão de saberes e de memórias das mulheres negras, que são as mulheres que normalmente contavam muito essas histórias, perpetuando saberes que, hoje, poderiam estar perdidos”, acrescenta.
A obra de Mafuane, apesar de ser inspirada em um livro infantil, pode ser identificável para o leitor brasileiro de todas as idades, trazendo elementos comuns de nossa cultura em toda a extensão da narrativa. As ilustrações dinâmicas de Taisa Borges funcionam como um adendo fundamental do conto, estabelecendo diálogo entre escrita e imagem, capturando os anseios da personagem e os elementos da cultura que também ganham vida na história.
Assim como na obra clássica, o pano de fundo de Cinderela do rio também demonstra o sofrimento da personagem, mas adaptado à realidade brasileira de desigualdades, privilégios, injustiças e racismo. Porém, o livro também convoca o leitor à mudança.
"Temos em mãos um livro que nos lembra que, se quisermos um Brasil mais leitor, com mais oportunidades culturais, mais sonhos e sem desigualdades, crianças e adolescentes não devem trabalhar – crianças e adolescentes precisam brincar, estudar, ler. Uma obra para cada pessoa que já encontrou ou busca o seu lugar no mundo, para frear as maldades e os falsos cuidados que geram crianças e adolescentes com ‘quase dignidade’, ‘quase abandonados à própria sorte’, escreveu a educadora social Bel Santos Mayer no posfácio.
“Esse livro em especial é um reconto de muitas mulheres, e é uma história de encantamento. Mas, na verdade, ela revela fatos que acontecem ainda hoje, de violência contra as mulheres, sobretudo em relação à questão do trabalho doméstico, então ela está situada na atemporalidade, de coisas que são do agora e já estavam acontecendo antes", finaliza a autora.