OPINIÃO

Dia da Mulher Negra: Lélia Gonzalez e as pretas que mostram os rumos para o Brasil

Data simbólica de resistência reflete desafios crescentes enfrentados pelas mulheres negras em um mundo com interseccionalidade de preconceitos

Carolina Maria de Jesus, Lélia González e Marielle Franco.Créditos: Arquivo Nacional / Correio da Manhã, Wikimedia Commons/Cezar Loureiro e Mídia Ninja/Wikimedia Commons
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O dia 25 de julho marca uma data triplamente importante para as mulheres pretas. Nessa data, é celebrado tanto o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, o Julho das Pretas, o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra no Brasil, e o renascimento de Lélia González. A data, que visa o fortalecimento da causa negra, foi instituída graças aos esforços da Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-Caribenhas junto à ONU. 

Tudo começou em 1992, quando um grupo motivado a reverter os alarmantes índices de violência e desigualdade que afetavam a população negra se reuniu em Santo Domingo, na República Dominicana. Nesse encontro, denominado Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas, foram gerados debates, discussões e iniciativas para combater esses problemas mais diretamente.

Hoje, os obstáculos disseminados por grupos de ódio são ainda maiores e atrapalham a superação de uma série de preconceitos sobre a mulher preta na sociedade, e para elas, tudo se torna ainda mais desafiadora e latente. Não deveria ser apenas um dia dedicado à luta, porque a luta é diária e o ato de resistir também, e a luta não deveria ser apenas de quem precisa resistir. Os diversos preconceitos sobre a mulher negra, principalmente a brasileira, gera um problema em larga escala, que chega até ao psicológico dessas mulheres através da interseccionalidade, as formas de exclusão social que que se relacionam.

São tantos estigmas contra as mulheres negras, que esse artigo não acabaria aqui e isso por si só já é muito preocupante. Pensadores negras do Brasil e da América Latina foram essenciais para destrinchar e desmistificar o emaranhado de preconceitos sobre a mulher preta. A Fórum selecionou algumas das mais marcantes nesse processo que deixaram uma marca significativa na política, na literatura e na defesa dos Direitos Humanos. Do passado ao presente, um legado e uma mensagem para o futuro livre de estigmatizações.

“Quando uma mulher negra se movimenta, o mundo inteiro se movimenta junto” - Angela Davis

Marielle Franco 

A vereadora brasileira Marielle Franco iniciou seu ativismo após a trágica morte de uma amiga, vítima de bala perdida em um tiroteio entre policiais e traficantes no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Como parlamentar, Marielle presidiu a Comissão da Mulher da Câmara e propôs iniciativas voltadas para os direitos das mulheres, da comunidade LGBTQI+ e dos moradores de comunidades. Em 2018, o assassinato de Marielle e de seu motorista, Anderson Gomes, gerou uma onda de indignação internacional.

Milhões de brasileiros passaram a conhecer e admirar Marielle Franco, mas infelizmente, esse reconhecimento só veio após sua morte, o que poderia ter sido diferente, mas não foi em razão justamente do racismo estrutural que permeia a população brasileira e pior, autoridades políticas atacaram e ainda atacam a vereadora brutalmente assassinada, mesmo diante de tantas provas. Marielle brilha, é uma chama de esperança e uma das maiores referências na luta negra feminina.

Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus

Maria Firmina dos Reis é marcante. Como romancista, ela se dedica às ideias emergentes do movimento abolicionista em uma nação marcada pelo escravismo e pelo conservadorismo. Nesse cenário, "Úrsula" se destaca como uma obra pioneira dentro da estética romântica, não apenas por ser escrita por uma mulher negra, mas também por abordar criticamente a escravidão no Brasil.

Séculos depois Carolina Maria de Jesus surge para denunciar o legado da escravidão: as condições que a população negra vive nas favelas brasileiras. Considerada uma das maiores escritoras brasileiras do século XX, Carolina Maria de Jesus foi multiartista, cantora e escritora de contos, crônicas, letras de música e peças de teatro. Amplamente conhecida pela triste história em Sacramento, Minas Gerais, seu percurso migratório e, principalmente, pelos anos vividos na Favela do Canindé, Carolina enfrentou a fome, o machismo, o racismo, a inflação e a pobreza dos anos 60.

"Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada" é talvez uma de suas grandes obras sobre as questões de uma situação que ainda é uma realidade brasileira. Mulher negra, catadora de papelão, mãe solteira e semianalfabeta, Maria de Jesus buscava no lixo tanto alimento quanto papel para escrever seu diário, poemas e músicas. Essa luta também era para garantir o sustento de sua família: José Carlos, João José e Vera Eunice, seus três filhos.

Não seria o diário “de uma favelada”, como diz o título e como muitos se referem a ela, mas um livro monumental escrito por uma mulher feminista negra da periferia, em busca de uma vida melhor e de um Brasil mais justo. O incômodo causado pelo próprio título é mais um reflexo da condição e dos preconceitos que ela enfrentava. Carolina encontrava luz em seus dias por meio das leituras no barraco e das anotações diárias em papéis avulsos, com um brilhantismo inigualável partindo do comum, dos problemas sociais e discutindo temas importantes para o país apesar de todas as barreiras, com palavras simples, mas profundamente necessárias. Leia mais nesta reportagem da Fórum.

Dandara dos Palmares e Tereza de Benguela

Dandara dos Palmares foi uma guerreira e líder quilombola que lutou incansavelmente contra a escravidão e pela liberdade dos negros no século XVII. Engajada em estratégias de resistência, ela empregava técnicas de capoeira e combatia ao lado de homens e mulheres contra os repetidos ataques ao Quilombo dos Palmares. Companheira de Zumbi dos Palmares, com quem teve três filhos, Dandara desempenhou um papel crucial na defesa do quilombo.

Tereza de Benguela, também conhecida como “Rainha Tereza” (século XVIII), residia no Vale do Guaporé, em Mato Grosso. Após o assassinato de seu companheiro, José Piolho, por soldados, Tereza assumiu a liderança do Quilombo de Quariterê. Sob sua liderança, o quilombo, que abrigava mais de 100 pessoas, tanto negras quanto indígenas, conseguiu resistir desde a década de 1730 até o final do século. Ela se destacou por organizar um tipo de Parlamento e implementar um sistema de defesa robusto.

Lélia González vive

Pensadora invisibilizada no próprio país, Lélia trouxe, há anos, conceitos discutidos atualmente através da ideia do feminismo latino-americano, amefricanidade, interseccionalidade, pretuguês e Améfrica Ladina, desafiando o conhecimento tradicional histórico e a língua portuguesa, além de colocar na linguagem a resistência, a diversidade e a identidade da população negra brasileira.

Mais recentemente estudada nos centros acadêmicos, Lélia é considerada uma das maiores intelectuais negras e feministas brasileiras do século 20. A autora desempenhou um papel significativo na abordagem e promoção de temáticas relacionadas a raça e gênero, sobretudo nos campos cultural e antropológico, esbarrando em diversas áreas de conhecimento. Como pioneira nas discussões interseccionais que abrangem desigualdades econômicas, de gênero e de sexualidade, Lélia via grande importância aos estudos e análises que destacavam as influências das culturas africanas e indígenas na construção cultural e intelectual do Brasil.

Filha de uma empregada doméstica de ascendência indígena e de um trabalhador ferroviário, Lélia se tornou uma escritora mineira e ficou conhecida por articular a ideia de que as mulheres negras enfrentam sobreposições de machismo e racismo,  para além de suas colegas norte-americanas, além de desafiar a concepção de democracia racial proposta por Gilberto Freyre e explorar as interseções da miscigenação latino-americana e africana.

Não cabe em Freud, Lacan e nem em Caio Prado. O nosso vocabulário cotidiano e a forma como vemos a realidade por meio dele revela a tamanha discriminação racial e sexista contra o povo negro. "A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência, até o português que falamos aqui é diferente do português de Portugal. Nosso português não é portuguê, é pretuguês [...] com todo um acento de quimbundo, de ambundo, enfim das línguas africanas", disse Lélia em uma entrevista certa vez.

Ícone do movimento feminista negro estadunidense ao lado de bell hooks, Angela Davis se preocupou com o fato de Lélia González não ser uma figura reconhecida dentro do próprio país. “Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”, declarou quando veio ao Brasil em 2019.