Em meio à agitação do cotidiano, como reconhecer a catástrofe que nos cerca? Essa é a pergunta que guia a pesquisa do professor e doutor em Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Victor Hermann. Em “Zona Cinza: A classe média no meio da catástrofe”, ele explora a percepção da catástrofe na sociedade contemporânea e como a arte ajuda a processar essa realidade. O livro se destina à classe média que, conscientes de catástrofes, ainda assim segue em frente, escolhendo sempre o risco.
Os riscos ao qual ele se refere são as tragédias humanitárias, a crise climática, o aumento crescente da desigualdade social, as polarizações políticas, o negacionismo científico, as fake news, os algoritmos, as big techs, o fanatismo religioso, entre outras questões consequentes do atual sistema neoliberal que assola diversas populações ao redor do mundo.
No conceito elaborado pelo autor para descrever esse dilema de consciência, ele afirma que muitos têm plena noção do risco da catástrofe ou até já foram atingidos por ela, mas não se reconhecem inteiramente como vítimas – porque reconhecer-se como vítima implica politizar a catástrofe. As pessoas na zona cinza frequentemente se angustiam com as notícias, estudam, discutem e compartilham informações sobre o tema.
Algumas chegam a protestar, mas, no fundo, atribuem a culpa exclusivamente aos políticos, às empresas ou à elite, e acreditam que a única solução seria o despertar coletivo da humanidade. Assim, encaram o risco de catástrofe à meia distância, como se ainda não fosse iminente, e não veem maneiras de investir sua criatividade na tomada de responsabilidade por essa situação.
“Somos atravessados por uma força que impede o entendimento, atravanca a negociação, confunde a solução, obstrui os afetos de empatia e prudência”, afirma o autor. “O descompasso entre o conhecimento abstrato e a experiência concreta da catástrofe. Um paradoxo que muitos já devem ter experimentado — como pensar no aquecimento global enquanto se bronzeia em uma bela praia do Rio de Janeiro”. O estudo se baseou em conceitos-chave como a 'zona cinza' de Primo Levi, o 'nevoeiro' de Guilherme Wisnik, a 'desresponsabilidade' de Frédéric Gros e a 'mobilização' de Isabelle Stengers.
A catástrofe “pode anteceder, proceder ou suceder a uma catástrofe. Antecede quando se trata de dissimular o risco de uma inovação; procede quando se trata de negociar o controle de risco de uma mercadoria; sucede quando se trata de transformar a própria catástrofe em oportunidade de mercado”
Capitalismo, catástrofe e punição divina
Nas brumas da zona cinza, o caráter natural e divino da catástrofe é confundido com os pressupostos naturais e divinos do capital. A zona cinza abrange esse limiar entre erro da civilização, punição divina da humanidade e emergência da oportunidade de mercado.
De acordo com Guilherme Wisnik, professor da FAU-USP, a ideia mostra que enquanto as big techs formam gigantescos monopólios que, por meio do ciberespaço, controlam não apenas a economia do mundo, mas também nossos afetos e relações interpessoais, “o regime do algoritmo promove uma nova forma de ‘seleção natural’, alicerçada pelos valores de autoafirmação individual, segundo os quais o ‘espírito do capitalismo’ – turbinado nos tempos pós-fordistas – comunga com o evangelho protestante e pentecostal. Na base de tudo, os laços coletivos e comunitários se desagregam diante do empreendedorismo triunfante, que desenha uma sociedade uberizada”, declara.
“Há uma espessa camada cinzenta que borra nossa visão, embota nossos sentidos, ameniza a tragédia em curso e nos torna dóceis, apáticos e conformados"
Outra consequência é a crescente desinformação nas redes sociais que gere a disputa pela verdade das coisas.
“Será que divulgar índices e dados científicos basta para fazer o conhecimento sobre risco circular? Circular, aqui, num sentido concreto: chegar à mesa de Natal, ao quarto do adolescente, ao corredor de um hospital no interior de Minas. A forma estatística, por si só, é suficiente? Ou falta criatividade para metamorfosear esse conteúdo em algo que realmente atravesse espaços e mova as pessoas?”, pergunta Victor.
“A disputa contra os algoritmos e fake news requer de nós uma intensa criatividade formal. Ora, existe hoje uma expectativa de que a solução para a catástrofe virá naturalmente, no dia em que todos aceitarem a autoridade inequívoca da ciência. Mas esquece-se que o homem moderno, para viver, precisa ignorar sistematicamente a ciência”, destaca o pesquisador.
“Pois, para cada aspecto ínfimo de sua vida, há uma infinidade de recomendações, muitas vezes contraditórias: dormir 8 horas é ideal ou exagerado? Café pela manhã faz bem ou mal? Usar etanol ou carros elétricos ajuda ou não no combate à crise climática? Como nem sempre ele pode esperar pela formação de consensos inequívocos entre cientistas, o homem moderno recorre, encarecidamente, à cultura – onde ele tem voz – para mediar o conhecimento e a experiência”.
Na verdade, a crença ingênua em uma conexão direta entre conhecimento científico e comportamento ético é característica da classe média — a qual, o autor destaca ser responsável por disseminar a informação. “Por preguiça ou para se desresponsabilizar, essa classe prefere delegar às estatísticas, ou até mesmo à própria catástrofe, a tarefa de ‘colocar lenha no grande bate-boca’, como diz Tom Zé. Afinal, se os cientistas já avisaram e todos estão sentindo na pele, por que ela deveria fazer mais do que lamentar pela humanidade - enquanto paga suas contas?”, diz.
Victor Hermann argumenta que as estatísticas e recomendações científicas, por si só, não bastam para criar novos modos de vida resilientes à catástrofe. Para efetivamente redistribuir responsabilidades no nível político e social, será preciso muita cultura, filosofia e arte.
“É preciso lembrar que os Racionais MC's provavelmente fizeram mais pela mitigação da violência do que boa parte das estatísticas sobre o tema (embora haja muitos cientistas criativos nesse campo também). É surpreendente que, até hoje, possamos contar nos dedos as canções que abordam — de forma explícita e envolvente — o aquecimento global. No entanto, é justamente delas que precisaremos, se quisermos debater a crise climática enquanto tomamos um solzinho na praia ou esperando o ônibus para o trabalho”, completa o autor.
O evento de lançamento do livro "Zona Cinza", é um convite para uma conversa profunda sobre a obra de Victor Hermann e contará com a presença de Andityas Matos e a mediação de Nanni Rios.