Cartas, diários, filmes em Super 8, fitas cassetes, aquarelas pintadas pela própria Miúcha, fotos e vídeos inéditos compõem um acervo expressivo, que conta, de forma singular, a história nunca antes revelada da cantora e do feminino da Bossa Nova. Grande parte desse material faz parte do arquivo pessoal da artista, e outra parte foi parte de um intenso trabalho de pesquisa da equipe do longa-metragem, extraído da Cinemateca Brasileira em São Paulo. A dificuldade de ser mulher e artista sempre esteve presente na vida de Miúcha, como se pode ver no próprio filme. As barreiras e o processo de apagamento do feminino podem ser observados em diversos fatos, entre eles a ausência de registros próprios sobre a cantora.
No filme, atriz Silvia Buarque (sobrinha), faz a leituras de cartas e trechos de diários originais de Miúcha, intercalando as narrativas com a própria cantora (arquivos pessoais), promovendo o encontro de duas gerações de mulheres na arte: Miúcha nos últimos anos de sua vida e ela mesma, mais jovem, interpretada por Sílvia. “Miúcha, a voz da Bossa Nova” é a primeira cinebiografia da artista, que conviveu de perto com ícones da cultura brasileira. Irmã de Chico Buarque, Miúcha foi casada por quase dez anos com João Gilberto, em uma relação muitas vezes turbulenta, como se nota pelos diários da cantora. O filme acompanha Miúcha se libertando dessas amarras e criando parcerias de palco e vida com Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Stan Getz e Pablo Milanés, entre outros músicos. Em entrevista, Silvia fala um pouco sobre o intenso e delicado processo:
Como foi a preparação para interpretar as cartas e diários de sua tia?
Silvia Buarque - Foi um trabalho difícil. O Daniel e a Liliane me dirigiram bastante bem, mas foi difícil porque eu tinha uma ligação muito especial com a Miúcha. Segundo o Daniel, ela queria que eu fizesse a leitura das cartas, e aí foi um trabalho sensível, delicado para mim. Eu fui no meu whatsapp e fiquei ouvindo as mensagens que ela me mandou, para tentar pegar a cadência, para me lembrar melhor da voz dela... a ideia nunca foi imitá-la, nem eu seria capaz. Mas eu queria pegar a cadência. Foi doloroso ouvir os recados dela, deu saudades... Tecnicamente falando, foi um trabalho bom, prazeroso. Eu conheci um lado dela que eu não conhecia. Foi gostoso, mas dolorido, por ter de revisitar conversas minhas com ela.
E esse lado dela que você não conhecia, o que isso despertou em você? Teve algum insight sobre a vida em família?
SB - Sobre a vida em família não, mas sobre a diferença geracional, sim. Existe um novo feminismo, já se fala numa quarta onda do feminismo, e eu sou interessada pelo assunto. E, nesse sentido, me esclareceu uma época. Essa geração que ainda foi criada para ser esposa e ao mesmo tempo pegou a revolução sexual, pegou a pílula. Miúcha era uma mulher muito livre, mas completamente aprisionada naquela relação com João Gilberto.
Você, como sobrinha, sabia disso?
SB - Sabia por alto. A Miúcha era uma pessoa faladeira, conversadeira. Eu sabia um pouco do que ela contava, mas ela contava com muito humor. Nos diários que li para o filme tinha um lado melancólico da Miúcha, uma lado quase deprimido, que eu não conhecia, principalmente quando ela estava no fim desta relação, querendo voltar para o Brasil. gente vê que toda história tem vários lados. Essa história me remete ao que os franceses chamam de ‘folie à deux’. O que mais me tocou como mulher, como sobrinha e mãe de uma menina foi essa coisa geracional, essa relação conflituosa entre eles.
Miúcha era feminista?
SB - Eu a vejo como alguém que flertou com o feminismo. Ela menciona isso nas cartas. Lembro também quando ela menciona a mudança da moda, das calças mais modernas. Ela desarma o cabelo e começa a deixá-lo natural, cacheado. É a testemunha de um tempo, dos anos 60 e início dos 70. Você vê pelas fotos, ela com o cabelo alisado nos anos 60, com um ar de senhora, e depois, mais adiante, com os famosos cachos que se tornaram marca registrada dela.
Como era a sua relação com ela? A leitura das cartas e diários íntimos mudou a imagem dela para você?
SB - Eu tive uma relação muito íntima com ela, durante toda a vida dela. A imagem que ficou dela para mim não mudou. Ela teve um papel de coadjuvante, por assim dizer, por ter sido casada com João Gilberto, ser irmã do meu pai, ser filha do Sérgio... mas a Miúcha era a protagonista dos lugares onde ela ia, ela era a alegria da família. Wilson das Neves, um grande músico brasileiro, que tocou com o meu pai, falava que eu era “toda a Miúcha”. Eu não fiz esforço para imitá-la, nem no filme nem na vida, mas as pessoas viam as semelhanças. Ela era a mais velha de seus irmãos, então ela tinha um papel muito unificador na família. Fiquei até com medo, depois da morte dela, que a gente se afastasse um pouco, mas felizmente isso não aconteceu. Ela foi uma tia muito presente na minha vida. Durante a infância na adolescência, uma convivência intensa, a casa dela era muito mais liberal que a minha. Ela foi muito importante para mim na minha vida adulta também. Continuo mantendo a imagem de uma Miúcha muito alegre, divertida, grande e brincalhona. Um exemplo: uma vez ela comprou um carro, mas não queria aprender a dirigir. Ela chamou o carro de Circuladô, como na música de Caetano: “que Deus te guie porque eu não posso guiar”.
Te assusta que o filme mostra a intimidade da família?
SB - Não, e eu acho que a Miúcha não tinha o menor problema com essa questão. Eu acho que a Miúcha merece um filme em que o ponto de vista dela seja contado, que não seja sempre a irmã do Chico Buarque ou a ex-mulher do João Gilberto ou mesmo à certa altura a mãe da Bebel Gilberto... mostrar a importância e o protagonismo e força vital, ela era uma pessoa que se destacava em qualquer lugar que ela fosse. Ela viveu bem, ela sabia viver.
Prêmios e participações
O longa-metragem recebeu o prêmio de Melhor Longa de Música no Festival Internacional de Cinema IndieLisboa, em 6 de maio, e também ganhou a premiação de Melhor Filme do In-Edit - México, em abril. E foi o único representante nacional na categoria musical da 38ª edição do Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, também no México, que aconteceu de 3 a 9 de Junho. Recentemente, esteve entre os finalistas do 15º Festival Internacional do Documentário Musical - In-Edit BR, em São Paulo.