MEMÓRIA

Documentário que transita entre o luto pandêmico e a infância LGBT estreia no YouTube

Filme “Segunda Pele” foi exibido pela primeira vez na África do Sul e agora chega ao público brasileiro

Documentário que transita entre o luto pandêmico e a infância LGBT estreia no YouTube.Créditos: Divulgação
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Historicamente, o Brasil é um país que possui uma relação delicada e dramática quando o assunto é morte e luto. Em muitas ocasiões, o tema é tratado como um tabu que não deve ser mencionado, principalmente na presença de crianças e jovens. 

Essa maneira da cultura brasileira em lidar com a morte é paradoxal, visto que a morte, como diz o velho ditado, é a única certeza que se tem desde o momento em que somos despejados no mundo. 

Com a pandemia, a questão da morte passou a se fazer presente diariamente na vida dos brasileiros e dos cidadãos do mundo todo. Todos os dias os telejornais apresentavam novos relatórios de mortes e contágios. Por muito tempo, eram milhares de vidas ceifadas pela Covid. 

 

 

Sem direito ao funeral 

 

Giovanna teve de lidar com a morte de seu pai por Covid no auge da pandemia, em março de 2021 e, conforme protocolos da época, não houve velório, não houve uma despedida de fato. Essa é a história que abre o documentário "Segunda Pele" (2023), dirigido por Rodrigo Pépe.  

De maneira poética, o curta metragem "Segunda Pele" fala da morte e das memórias que ficam. "Invariavelmente o filme aborda morte e luto, mas num sentido mais amplo, como uma experiência que todos passamos em momentos que exigem superação, como um processo de troca de pele mesmo, em que é preciso deixar algo morrer, para outra coisa nascer", explica o diretor do filme.

Além disso, o filme de Rodrigo Pépe também transita pela infância LGBT e as várias violências que tal período da vida pode acarretar para um pequeno entendido pelo olhar do Outro como não hétero. Aqui, Pepe “deixa de ser” o diretor e se posiciona em frente às câmeras para falar sobre os primeiros anos de sua vida e uma espécie de morte e luto sobre esse tempo. 

“Me colocar neste lugar de vulnerabilidade foi algo bem peculiar, principalmente porque no caso da história que compartilhei, envolvia não somente a mim, mas também a minha família”, revela Rodrigo Pépe.  

Morte, luto, roupas e memória. Essa é trama pela qual o documentário “Segunda Pele” transita de maneira emocionante. 

O filme "Segunda Pele", que teve a sua primeira exibição em março deste na África do Sul, estreia ao público brasileiro nesta sexta-feira (7), às 20h, no canal da produtora, a Gaspacho Filme, no Instagram. O curta ficará disponível por 15 dias. 

A Fórum, a convite da Gaspacho Filmes, participou de uma cabine do filme e, posteriormente, conversou com o diretor do curta "Segunda Pele", Rodrigo Pépe. A íntegra da conversa você abaixo. 

 

 

 

 

Fórum - Como surgiu a ideia de abordar a morte e o luto a partir das roupas que ficam?

Rodrigo Pepe - A ideia veio da proposta de abordar relatos sobre construção de identidade, histórias que fossem marcantes e que geraram pontos de virada na vida dos personagens. Neste sentido, a peça de roupa surgiu como um link para acessar essas histórias, porque percebemos que elas carregam muitas simbologias. Uma roupa para um adolescente pode representar a integração com uma tribo, para uma noiva um elemento sagrado de um ritual de passagem, e para alguém que perdeu um ente, pode funcionar como uma forma de se reconectar.

Invariavelmente o filme aborda morte e luto, mas num sentido mais amplo, como uma experiência que todos passamos em momentos que exigem superação, como um processo de troca de pele mesmo, em que é preciso deixar algo morrer, para outra coisa nascer.

Desde o início do projeto a escolha dos personagens seguiu esse foco, e a partir disso buscamos histórias que abordassem empoderamento feminino, infância LGBTQIAP+ e ancestralidade, temas que nos interessam e estão presentes em praticamente tudo o que produzimos. A partir daí a pesquisa passou a acontecer como algo quase que natural, enquanto ouvia um podcast encontrava um personagem, ao ouvir um relato de alguém, encontrava outro, e assim as histórias foram surgindo e se costurando.

 

Fórum - Você é um dos personagens do documentário: voltar aos tempos de sua infância e, consequentemente, aos traumas de uma criança LGBT cerceada, como foi? Considera que o período de superação também é uma espécie de morte e luto em relação a esse tempo?
 

Rodrigo Pepe - Após realizar alguns experimentos documentais, sinto que estou familiarizado com o processo de abordar realidades muitas vezes difíceis de digerir, tenho um cuidado extremo para acessar cada camada dos personagens, para que eles se sintam confortáveis de retornar a lugares e sensações que também podem ser dolorosas. Me colocar neste lugar de vulnerabilidade foi algo bem peculiar, principalmente porque no caso da história que compartilhei, envolvia não somente a mim, mas também a minha família.

Ter sido uma criança gay nos anos 90, foi vivenciar a última geração carente de representatividade e cerceada de todas as maneiras. Ainda não existia o termo bullying e a infância LGBTQAIP+ era vista como algo a ser combatido tanto na escola, como dentro de casa. O filme aborda tudo isso com um olhar poético, mas confesso que foi nas rotinas de bastidor que senti o baque. Quando resolvemos já no desenvolvimento do roteiro, que a participação da minha família era algo fundamental, me vi com receio de convidá-los, e isso acionou gatilhos que eu não imaginava que ainda estavam lá.

Levei a questão para a análise e descobri que caso eles não topassem participar, mesmo que por timidez ou outro motivo, a negativa soaria para mim como uma não aceitação de quem eu sou. Demorei um tempo para conseguir fazê-lo, mas lancei o convite de uma maneira leve em um jantar e eles toparam na hora. Por isso acredito que este tipo de vivência gera sim uma espécie de luto, e no meu caso, a simbologia da participação da minha família homenageando a minha comunidade, a comunidade LGBTQIAP+, ao final me trouxe uma sensação de pós-luto, de como se de fato eu tivesse completado um processo de troca de pele.

 

 

Fórum - Uma questão geral: uma das histórias traz o luto coletivo em torno da Covid. Tenho a sensação de que esse tema tem sido pouco tratado nos produtos culturais. Acredita que ainda há uma espécie de barreira para se falar da Covid no aspecto da morte e do luto? Como você tem observado isso?
 

Rodrigo Pepe - Não sei se há uma barreira, mas vejo algumas possibilidades de resposta para essa pergunta. No filme abordamos também a história da Giovanna Belucci, que sofreu um luto familiar de Covid pouco tempo antes da vacina ser disponibilizada. De longe eu sabia que esta seria a história mais delicada de se abordar, por se tratar de um luto que sequer houve tempo para ser elaborado. Neste sentido, imagino que talvez esta falta de produções atuais com temática do Covid que você aponta, possa estar neste lugar também, de algo que ainda precisa ser digerido, para ser abordado de maneira mais madura no futuro.

Como espectador percebo que houve muita produção independente sobre o tema durante a pandemia, principalmente em curtas-metragens e formatos experimentais como videodanças. Por estarem sem uma rotina de trabalhos ativa e vivendo a pressão do confinamento, os artistas estavam com muita necessidade de produzir, e dali surgiram coisas intensas que creio que marcaram historicamente a produção cultural daquele momento. 
Por último imagino que também haja um sentimento coletivo de “mudar de fase”, um tipo de negação (que é a primeira fase do luto), mesmo que momentaneamente e a curto prazo, uma vontade de esquecer este tema que esteve diariamente nos jornais, nas redes sociais e nos cerceou de tantas maneiras.