CRÔNICA DE DOMINGO

Singelo relato com dois meninos e um gato. Spoiler: dois morrem no fim

Relato do cotidiano com história de meninos que vivem em situação de rua, desde Capitães de Areia, de Jorge Amado

Escrito en CULTURA el

Primeiro a necessidade de um salto rápido, quase um bote, depois da corrida louca, para detê-lo pela camisa, puxá-lo; depois, foi como um impulso, seta do desejo: a mão num soco, fechada como a frente de um Scania, bem no fígado, puf, seco, e, então, o outro curva-se, quase uma cadeira, a boca, de dentes podres, abre-se, a língua tremendo num grito pavoroso, os olhos arregalados amarelecendo no rosto negro.

Em direção aos dois, uma pessoa atravessa a rua, uma pessoa quase gato, tão ágil ela. Outras, outro lado da rua, olham apenas; isso, é fácil prever, é por enquanto.

O ódio continua surdo, e ele, agora, aplica, mãos espalmadas, plaft, um telefone-sem-fio no outro; o menino cai, mãozinhas no ouvido, um milhão de abelhas na cabeça zumbindo, lágrimas dos olhos escorrendo, quase um feto no chão, retorcido.

O homem chuta a cara do menino, cract; sangue e alguns dentes que, podres, quebraram tão fácil, saltam pela boca, quase de velho agora: murcha.

Outras pessoas cercam os dois, olham: espanto. Sobre suas cabeças: prédios e um céu azul, daqueles de se dizer diáfano, transparente, translúcido.

Alguns comentam que eram dois os pivetes, e do morro do Pavãozinho, na certa, ou de muito longe, da Baixada, se tudo é incerto; mas dois, que um fugiu: "menorzinho ainda e já ladrão, deve estar por aí"; certo é que eram dois, pretendiam a bolsa de uma senhora, mas ela protestou, gritou, o homem viu, e o resto é o que estamos, impassíveis, presenciando.

O homem pega a impressão de feto pelas pernas, segura-as bem, e, por elas, levanta-a. O menino de cabeça para baixo, o que o homem pretende?

Um rapaz puxa a namorada, vamos embora daqui, ele diz, eu já vi esse filme. Ela pergunta qual o filme. Os dois afastam-se do grupo, que, de ciranda em ciranda, aumenta; afastam-se mais, atravessam a rua e, pouco adiante, a menina saltando no ombro do namorado, param - com certeza, o filme ele contou a ela.

O homem, zum-zum, começa, mãos nos pés do menino, a girá-lo. Tão forte é o homem, o menino parece uma ausência súbita, sombra apenas, que roda por cima da cabeça do homem. Este começa a caminhar, ainda zum-zum, e o grupo abre, o grupo num burburinho, dando passagem ao homem-helicóptero, uma pergunta animando a cabeça de todos: o que pretende?

Como o Átila do filme de Bertolucci, 1900, o homem, ainda, e sempre, girando o menino, bate, prac, com a cabeça dele num poste, onde, numa placa, lê-se ATENÇÃO ESCOLA DEVAGAR; e, prac, girando, bate outra vez, sangue e miolos espirrando — não em ninguém, que todos estão afastados apenas olhando — prac, e prac, e prac.

O homem assim, cansa-se, ufa, e solta o ex-menino no chão de sempre. O grupo, cirandando, renova-se, uns que vão são outros que vêm: a cara de espanto quando veem o ex-corpo; então, conversa de olhos curiosos, pequenas exclamações, dúvidas, ais.

A cinco quarteirões dali, o menorzinho, que conseguiu fugir, limpa, na camisa suja, uma pera, lindo vê-la, apanhada pouquinho atrás num vacilo do comércio, e morde-a, uma delícia sob o céu azul, tantos prédios.

*Este pequeno Relato faz parte de meu primeiro livro publicado, o volume de contos A Metáfora de Drácula, Livraria José Olympio Editora, 1982, há 41 anos. Como se vê, de lá para cá parece que só o que mudou é que já não há mais a placa ATENÇÃO ESCOLA DEVAGAR, que procurei para ilustrar.

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O primeiro é uma transposição do clássico de Flaubert para os anos Collor, escrito por um aspirante a escritor com a mesma pretensão de Flaubert, mas sem as mesmas determinação e talento. Foi publicado pela Publisher, aqui da Fórum. O segundo narra o encontro entre um cantor e compositor famoso com uma bela mulher, enquanto o noticiário só fala de uma organização internacional que tem como meta assassinar todos os bilionários do mundo. Spoiler: ELA faz parte da organização.