CINEMA

The Batman: novo clássico ou enganação? – Por Filippo Pitanga

Teriam alguns dos mais recentes sucessos comerciais conseguido conciliar sucesso de público e de crítica e renovar a linguagem do cinema ou só reciclaram o padrão para atender demandas do poder atual dos fãs de internet?

Créditos: Divulgação
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No dia 18 de abril chegou à plataforma da HBO Max o mais recente sucesso dos cinemas “The Batman” de Matt Reeves, que conseguiu encher as salas do circuito num feito raro hoje em dia, desde a tímida retomada das exibições presenciais. O fato é que está acontecendo uma crise no mercado, e as pessoas não necessariamente voltaram a se sentir confiantes de lotar sessões de cinema, o que ocasionou o fechamento e falência de várias unidades que resistiam bravamente à recessão desde antes da pandemia, e a chegada (quase) simultânea das obras ao streaming. 

Todo sucesso é muito bem-vindo em auxiliar a sétima arte a se reerguer, mesmo que estejamos falando de blockbusters de língua inglesa que outrora já monopolizavam a indústria, inibindo outras filmografias, culturas e territorialidades de terem possibilidade de acesso ao imaginário popular. Eis que se faz, portanto, mais necessário do que nunca analisar criticamente que tipo de linguagem está ocupando os cinemas, e se há possibilidades de desdobramento para apreciação de outras obras no cardápio a partir do apetite degustado por tal perfil de filmes. Poderiam os blockbusters de hoje voltarem a se engajar artisticamente e numa autoralidade que estimule a busca por outras obras mais desafiadoras?

“The Batman” se sucedeu a outro sucesso de adaptação dos quadrinhos, “Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa”, que havia se beneficiado bastante em atender à demanda dos fãs da internet, fazendo quase um “fan service” (serviço aos fãs) ao incluir até memes das redes na narrativa, e unir realidades alternativas de outros filmes e outros atores que já interpretaram o personagem para criar um grande crossover (cruzamento de universos), todos juntos ao mesmo tempo (se quiser saber mais da disputa entre estes dois longas-metragens, confira o registro de ótimo debate clicando aqui).

Aliás, não só a Marvel está fazendo isso, já que a DC promete o mesmo em “The Flash”, longa-metragem sobre o velocista escarlate previsto para 2023 e que trará dimensões paralelas como ex-intérpretes do personagem Batman como participações especiais (de Michael Keaton a Ben Affleck). Porém, não estamos falando de “fan service” no novo filme com o homem-morcego dirigido por Matt Reeves.

Não. Muito pelo contrário. O diretor, assim como o colega Christopher Nolan no passado, recebeu passe livre para reimaginar a cosmologia do personagem de forma independente, desobrigando qualquer relação com as demais produções da saga, de modo a criar um filme por sua própria linguagem, e não pelo empréstimo de signos alheios. Decerto o cineasta jamais iria querer desrespeitar uma grande mitologia original consolidada por décadas, muito pelo contrário, e sim mergulhar nas raízes da essência para resgatar o que talvez tenha ficado de fora das produções comerciais dos últimos anos. Mas seria o suficiente para criar um novo clássico?

O maior acerto desta mais recente versão definitivamente é trazer de volta à tona o lado detetive do herói, cujas investigações na calada da noite ficaram devendo em últimas tentativas frustradas de privilegiar a ação e um tom épico de grandiosidade atrelado a orçamentos gigantescos. Reeves trouxe referências declaradas do cinema noir da década de 1940, com personagens ambíguos imersos nas trevas de si, onde a separação entre bem e mal se torna turva, transbordando entre caça e caçador que invertem de lugar alternadamente. E mais do que apenas uma caçada material, vai se tornando um dilema moral para o herói e aqueles ao seu redor (como em “Batman – O Cavaleiro das Trevas” de2008).

Numa projeção talvez esticada demais, com por volta de três horas de duração, a narrativa subsiste mais forte enquanto está atrelada à investigação principal, seus suspeitos e alvo... Quão logo esta parte seja dada por encerrada, em pouco mais de dois terços da sessão, o filme termina por se esvaziar e inutilizar até mesmo nas figuras mais interessante do elenco – ao mesmo tempo em que investe na tentativa de alcançar algo grandioso que produções deste porte exigem para apaziguar o clamor de público por explosões e tiroteios de larga escala.

Vale relembrar e valorizar que as filmagens foram realizadas durante a pandemia, e interrompidas algumas vezes para atender aos protocolos de segurança, inclusive quando alguns membros da equipe adoeceram e se recuperaram. Isto fez com que várias logísticas de estrutura foram enxugadas de forma inteligente, criando uma impressão mais intimista até em seqüências de ação mais caras, como a principal perseguição de carro deste exemplar.

Provavelmente no intuito de diminuir contato, ou mesmo ter o mínimo de especialistas presentes no set com risco de contágio, várias decisões acabaram sendo muito acertadas a otimizar a decupagem, ou seja, o plano de cenas quadro a quadro, de modo a criar um olhar mais rente ao acontecimento e menos preocupado com o quadro geral, a não ser na hora da montagem em pós-produção.

Debruçando-nos um pouco mais neste bom exemplo do longa-metragem no modo de fazer adaptado destes novos tempos, ao invés de enquadrar planos gerais e mais abertos, necessitando de gruas e muitos carros na larga via da perseguição entre Batman (Robert Pattinson) e o personagem de Pingüim (Colin Farrell, numa caracterização irreconhecível), o diretor dispôs de câmeras e pontos de vista rentes ao carro, ao espelho retrovisor, ao para-brisa etc... Muitas vezes temos a perspectiva subjetiva do personagem ou de determinado objeto de cena, trazendo a narrativa bem para perto, com uma visão imersiva do evento, como se estivéssemos no lugar de quem vê.

Ao invés de castrar a potência, isso adiciona efeito psicológico de um jogo de xadrez, como se a ação estivesse diretamente ligada aos pensamentos, e não à escala, numa boa solução por parte da fotografia de Greig Fraser (não à toa, ganhador do respectivo Oscar pela mesma função em “Duna”). Isso ajuda particularmente na atuação do elenco, cujo desenvolvimento de personagem se torna intrincado uns aos outros, e não a meras reviravoltas – porém, isso apenas até a resolução da trama principal, após passar pelo último suspeito, e aí sim acontecer um esvaziamento total e até contradizer o que havia sido posto até então, com mais uns 50 minutos de projeção desnecessária só para fazer valer o investimento.

Apesar da terça parte final mal planejada e pobremente executada, sem a criatividade anterior, a cidade fictícia de Gotham foi bem desenhada, com mistura de ares pós-modernos, típicos de “Metropolis” e “Blade Runner”, fundida com as obscuras ruínas sujas sob a parca iluminação de postes e letreiros de rua numa sensação de exclusão e crítica social advindas de “Taxi Driver” – de uma “outra cidade”, por sob a principal.

E isso permeia a iluminação do filme, num tom predominante de amarelo sépia em meio ao chiaroscuro, bem distante de uma representação solar (que, quando aparece, é alaranjada e crepuscular, jamais iluminando os dias nublados), e puxando para algo envelhecido ou doentio, como lâmpadas foscas em vielas sem saída. Sem falar na trilha sonora que vai de forma bem freudiana de Nirvana à “Ave Maria” de Schubert, bem como perpassa belas composições melancólicas e góticas de Michael Giacchino, com toques que lembram os graves da música-tema de Darth Vader em “Star Wars”.

Esta fotografia e trilha não deixam de complementar bem a ambientação demarcada para cada personagem em seu habitat, já que a mitologia do homem-morcego costuma associar aliados e vilões a nomes de animais, como num zoológico ou no submundo de uma floresta de rejeitados. Em seu apartamento de longas janelas para lajes e telhados ou no trabalho de fachada em boates da máfia, a Mulher-Gato de Zöe Kravitz (“Big Little Lies”), por exemplo, talvez seja a intérprete que mais chegou perto da personificação contemporânea dos quadrinhos, numa boa mistura de espiã e contraventora de pequenos crimes para equalizar a balança da falta de equidade social.

Apesar disso, a química com Batman não é das melhores na franquia, exclusivamente pela condição confinante com que o diretor construiu a dicotomia identitária do herói e seu alter ego. Selina Kyle nunca esconde sua alcunha de Mulher-Gato, parte integrada de si, mas flerta apenas com a figura encapuzada de seu par romântico, friamente racionalizado, e não com o homem por trás da máscara, o qual quase nunca se humaniza (exceto na ótima cena com refém na Igreja, não à toa a melhor seqüência do filme e que ficará na memória dos fãs).

Robert Pattinson (“Cosmópolis” e “Bom Comportamento”) já havia demonstrado se sair bem no arquétipo de personagens obscuros com ou sem poder financeiro, correndo de encontro ou para longe do perigo nas grandes cidades... Mas, aqui, encontra-se dividido em duas propostas contraditórias. Infelizmente é certo dizer que este talvez tenha sido a pior construção de Bruce Wayne até hoje, ou seja, a famosa identidade secreta do Cavaleiro das Trevas. E não por culpa do ator, muito pelo contrário, pois a própria duração do filme o coloca encarnando o mascarado por quase todo o tempo.

Parece que a estratégia é dizer que ele se tornou o herói faz pouco tempo (é dito que só há 2 anos), e ainda não vê utilidade nenhuma para manter a outra representação pública de Wayne... Poderia ser promissor para fazer o inverso pela primeira vez, desenvolvendo como o Batman teve de literalmente reconstruir quem seria Bruce do zero, após a morte de seus pais, e entendendo sua dupla função na sociedade, não só como justiceiro à noite, mas como filantropo de dia com todo aquele patrimônio da família.

A questão é que o roteiro, assinado pelo próprio Matt Reeves e Peter Craig, trabalha bem, sim, a parte militante das madrugadas, justamente por causa da pegada detetivesca elogiada no início desse texto. No entanto, ao finalmente colocar o alter ego do protagonista na berlinda, pois o histórico da família Wayne será questionado, desperdiça o xeque-mate existencialista, o qual tinha tudo para ser desenvolvido como mote na terça parte final, e isso jamais ocorre.

A expectativa é frustrada justamente por apontar uma promessa interessante e esvaziá-la logo depois, ocasionando que a interpretação introvertida composta por Pattinson para o lado mais demasiadamente humano de seu papel não é o equívoco, tão somente o não aproveitamento disso no próprio roteiro, que relega a terça parte ao Batman em cenas de ação desnecessárias, e não a Bruce – esvaziando junto com ele alguns personagens paralelos igualmente com potencial, como o Alfred (Andy Serkis) mais subestimado e mal tratado até hoje, e até a intrigante prefeita Bella Reál (Jayme Lawson).

Por falar em desperdício, quase todos os bons personagens do longa-metragem se encerram de fato com a trama principal que acaba com dois terços de projeção, inclusive os excelentes Falcone de John Turturro, a Mulher-Gato de Zoë Kravitz e o Pingüim de Colin Farrell. Depois disso, apesar de uma ótima referência pictórica à famosa pintura “Nighthawks” de Edward Hopper, o principal vilão, Charada, encarnado de forma inspirada por Paul Dano, é dilatado em excesso.

Até mesmo sua representação não é tão inédita assim, pegando emprestado o trabalho de voz maravilhoso que já havia sido feito por Tom Hardy com seu Bane no fraquíssimo “Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge”. Além de “The Batman” igualmente diminuir um pouco o poder dos antagonistas, desde que eles também entraram na onda pós-moderna de vulnerabilização da jornada dos vilões, como no recente sucesso do longa-metragem “Coringa”...

E, apesar de o novo filme pelo menos inovar na relação de Dano com as redes sociais, dispositivos virtuais etc, como celular, webcam, e fóruns de incels, muito em voga no debate sobre a toxicidade da internet atual, o ator também aparece pouco sem máscara (como Wayne) e talvez por isso o cineasta sinta a necessidade de estender o final para cumprir com o tempo de tela habitual destes contratos de Hollywood. Sem falar no vergonhoso encerramento de sua subtrama, mal planejada e mal filmada, inclusive, com mais um planejamento descabido de destruição da cidade inteira – quando a espinha dorsal anterior não tinha absolutamente nada a ver com destruir a matéria, e sim com o espírito de Gotham.

Quem brilha e se destaca como talvez a melhor representação de James Gordon, antes ainda de se tornar Comissário, é o artista geralmente esquecido das grandes produções Jeffrey Wright, brilhante como companheiro de investigação do Homem-Morcego, justamente por não ser seu subordinado como um Robin ou Batgirl, e crescendo justamente nas discordâncias e liberdades que o personagem adquire perante o vigilante com quem colabora, mesmo contra a vontade da força policial em peso. Quem sabe se não tentarem colocar ajudantes tão cedo na seqüência já confirmada para próximos exemplares o excelente ator possa manter seu nível de qualidade de aproveitamento.

Autoralidade às vezes não é resposta para tudo, mas pelo menos foi uma boa tentativa de Matt Reeves de fazer um bom filme afora das exigências do estúdio em tempos de salvamento das salas de cinema que estão respirando por máquinas artificiais... Mas, ainda assim, como agora podem ver a obra na HBO Max com o controle remoto na mão, aconselho encerrar a projeção com 130 minutos de projeção e descartar os cinqüenta minutos restantes. Engrandece o filme e evita a fadiga.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.