FASHION REVOLUTION

Quem fez minhas roupas? Condições de trabalho de quem costura o que você veste são preocupantes

A indústria da moda é um dos segmentos produtivos mais suscetíveis ao trabalho análogo à escravidão, a escravidão moderna, tanto do Brasil quanto em outros países

Créditos: Fashion Revolution Brasil
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O questionamento proposto pelo movimento Fashion Revolution, 'Quem fez minhas roupas?', nos conduz a uma jornada que revela um problema sério e que exige soluções urgentes: as condições precárias de trabalhadoras e trabalhadores por trás das peças que nos vestem.

A indústria têxtil e de confecção, parte da cadeia produtiva da indústria da moda, por exemplo, é um segmento suscetível às práticas do trabalho análogo à escravidão. Segundo dados do Global Slavery Index de 2018, do total de U$ 354 bilhões em itens produzidos sob mão de obra escrava contemporânea, mais de um terço são peças de vestuário.

A explicação para essa epidemia de trabalho análogo à escravidão na moda tem uma miríade de teorias. Uma delas é que em virtude de ser uma atividade de baixo impacto tecnológico, afinal basta uma máquina de costura e uma pessoa para executar a tarefa, seja tão comum esse tipo de prática desumana.

A Repórter Brasil, iniciativa jornalística que fomenta a reflexão e ação sobre a violação aos direitos fundamentais dos povos e trabalhadores em solo brasileiro, reúne diversas denúncias de trabalho análogo à escravidão na moda.

Um dos casos de escravidão moderna revelados pela Repórter Brasil é o da Program, que se autointitula a “maior rede plus size do Brasil”. De acordo com a matéria, enquanto os estilistas divulgam visitas a centros da moda mundial "em busca de inspiração e novas ideias", costureiros bolivianos que produziam peças para a marca eram submetidos a tratamento desumano.

A empresa foi condenada pela Justiça em março de 2021, mas o cativeiro dos trabalhadores resgatados não acabou: vítimas de possível servidão por dívidas, jornadas diárias de 16 horas de trabalho e até privação de alimentos, eles ainda não receberam nenhuma indenização.

Voltada ao público feminino, a Program está presente em mais de dez estados brasileiros, e apenas em São Paulo mantém 33 lojas físicas. A marca também opera no e-commerce – no site da marca, os shorts que eram costurados pelos bolivianos submetidos a trabalho escravo custam entre R$ 80 e R$ 175, a peça.

Esse não é o único caso de violação de direitos dos trabalhadores na indústria da moda: o aplicativo Moda Livre elabora um ranking e expõe as marcas que exploram mão de obra escrava em suas operações.

A pandemia da Covid-19 deixou os trabalhadores e trabalhadoras das fábricas têxteis e de confecção ainda mais vulneráveis. Há uma epidemia de débitos salariais e desemprego. Milhões de pessoas que costuram nossas roupas estão incapazes de pagar por necessidades básicas como alimentação e aluguel.

Relatório da Worker Rights Consortium de novembro de 2020 descobriu que quase 80% dos trabalhadores interrogados do setor de vestuário passaram fome. Pressionados a acelerar a produção de roupas para compensar cortes de preços dos varejistas, os trabalhadores se deparam com a deterioração das condições de trabalho tão rápida quanto o fast fashion. Há relatos generalizados de ‘derrocada sindical’ com sindicalistas e ativistas trabalhistas sendo demitidos desproporcionalmente.

O coronavírus fez com que milhares de pessoas perdessem empregos ou tivessem reduções dramáticas nos salários, à medida que grandes marcas nos EUA e na Europa cancelaram ou se recusaram a pagar pelas encomendas. No levantamento feito no início da pandemia, entre abril e junho de 2020, essa dívida estava em cerca de U$16,2 bilhões.

A organização Clean Clothes realiza a campanha #PayYourWorkers (pague seus trabalhadores, em português) para incentivar que os consumidores pressionem as marcas a quitarem as dívidas com os trabalhadores.Algumas das marcas expostas nesse calote vergonhoso são conhecidas mundialmente, como Nike e H&M.

Em Karnataka, na Índia, em decorrência da pandemia da Covid-19, fábricas de confecção estão sem pagar o salário de 400 mil trabalhadores, principalmente mulheres, desde abril de 2020. A Worker Rights Consortium considera o caso o maior roubo salarial que já atingiu a indústria da moda, a dívida soma mais de 40 milhões de libras.

Aqui no Brasil, a classe trabalhadora, inclusive quem atua na indústria da moda, tem sido profundamente impactada pela Lei 13.467/2017, conhecida como “Reforma Trabalhista”. A legislação entrou em vigor em novembro de 2017 com a promessa de gerar empregos formais a partir da desregulamentação do mercado de trabalho. O resultado foi a retirada de proteção social e direitos dos trabalhadores e barateamento no preço da mão de obra da classe trabalhadora. 

Outra promessa da Reforma Trabalhista foi de que fomentaria a criação de novos empregos. Mais uma vez o resultado foi o oposto: os índices de desemprego não cederam, pelo contrário, aumentaram. 

Mesmo antes de iniciar a pandemia, a Pnad contínua do IBGE já apontava para o crescimento do número de desempregados e de trabalhadores na informalidade e para queda na renda média dos trabalhadores.

Ao contrário do que foi difundido, a (de)reforma trabalhista não modernizou a legislação do trabalho nem promoveu desenvolvimento econômico. A situação atual da economia brasileira é de elevado desemprego, inflação preocupante, preço do dólar descontrolado, uma profunda desindustrialização e a volta da fome. 

Suprimir direitos dos trabalhadores e reduzir sua renda empobreceram a população assalariada e potencializaram a já absurda concentração de renda no país. 

A pedagoga, designer, mestre e doutoranda em Sociologia Gabriela Jales pesquisa a situação das mulheres trabalhadoras do setor de confecções no estado dela, a Paraíba. 

Gabriela é professora e consultora em Design de Moda e representante do movimento Fashion Revolution em João Pessoa, capital paraibana. Ela tem feito comparações da situação dessas mulheres que atuam no setor de confecção e têxtil antes e depois da Reforma Trabalhista.

A partir de informações sobre vínculos com a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), microempreendedores individuais (MEI) e informalidade, Gabriela constatou que a Reforma Trabalhista abriu precedentes de precarização do trabalho nunca antes vistos. 

"Temos uma legislação cada vez mais perversa, neoliberal, que se assemelha muito às políticas de países asiáticos que tanto criticamos. Mas o fato é que essas mulheres precisam trabalhar, sustentar suas famílias e acabando com o consumo, aqui ou lá, é acabar também com o sustento, precário ou não, de mulheres."
Gabriela Jales, Fashion Revolution João Pessoa (PB) 

Gabriela ressalta que a precarização das condições de vida da classe trabalhadora, que inclui a moda e todos os outros segmentos produtivos, está diretamente relacionada à dinâmica da divisão internacional do trabalho capitalista entre países do Norte e do Sul Global. 

"A gente viu o desespero dos países 'periféricos' que tiveram suas encomendas canceladas durante a pandemia, o que aconteceu com os trabalhadores, que são mesmo o lado mais frágil de todos", exemplifica. 

Nesse cenário, o Fashion Revolution, movimento global de ativismo da moda deflagrado a partir do desabamento do Rana Plaza, prédio que abrigava diversas confecções de marcas internacionais em Daka, Bangladesh, em 24 de abril de 2013, ampliou o escopo de debates. 

A melhoria das condições da classe trabalhadora da moda e da própria indústria da moda e de todo segmento produtivo do mundo capitalista, perpassa por melhorias e questionamentos sobre a lógica capitalista, colonialista e imperialista. A moda não está numa vitrine. Ela faz parte do mundo no qual vivemos e tanto influencia quanto é influenciada por tudo que ocorre na nossa sociedade. 

Semana Fashion Revolution 2022

Até o próximo domingo (24) está sendo realizada a Semana Fashion Revolution 2022 que este ano aborda os eixos temáticos 'Dinheiro, Moda e Poder'. A campanha anual é o principal evento do Fashion Revolution, o maior movimento de moda ativista do mundo, com atuação em cerca de 100 países, inclusive no Brasil. Aqui, estão sendo realizados mais de 250 eventos em 90 cidades de 20 estados e no Distrito Federal.

Confira a programação completa no Brasil.

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*Iara Vidal (@iaravidal) é representante do Fashion Revolution em Brasília (DF) e pesquisadora independente dos encontros da moda com a política.