Por mais um carnaval, o tradicional desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro não sacudiu a Marquês de Sapucaí com plumas, batuques e muito samba no pé. Em razão do surto da variante ômicron da Covid-19 no início de 2022, a Prefeitura do Rio decidiu adiar o Maior Espetáculo da Terra para o feriado de Tiradentes, em abril - apesar de muita coisa seguir em normal funcionamento. Isso fez a Praça da Apoteose ficar órfã novamente dos carros alegóricos monumentais e dos componentes emocionados depois de expressarem sua arte nos 700m da Passarela Professor Darcy Ribeiro, o Sambódromo do Rio.
Nos últimos anos, os enredos mais engajados politicamente se proliferaram na Avenida, em meio a uma ofensiva das autoridades públicas contra a grande festa. Se o Carnaval por si só já é resistência, em especial do povo negro que encontrou nas escolas de samba uma forma de expressão cultural, alguns desfiles dialogam com temas quentes no debate político brasileiro ou até se propõe a pautar a opinião pública.
Enquanto a Estação Primeira de Mangueira cantou pelos heróis que não estão na narrativa oficial em 2019, o Paraíso do Tuiuti levou em 2018 um desfile arrebatador sobre os 130 da abolição da escravidão. Esses desfiles beberam de uma longa tradição de desfiles políticos que tiveram Caprichosos de Pilares, Império Serrano e Vila Isabel como importantes referências nas décadas anteriores. A própria Mangueira levou o antológico "Cem anos de Liberdade, Realidade Ou Ilusão" para a Sapucaí em 1988, questionando o centenário da abolição.
Em 2022, diversas escolas pretendem levar para a Avenida reivindicações sociais, em especial do povo negro. É o caso do Acadêmicos do Salgueiro, com o enredo "Resistência", e da Beija-Flor de Nilópolis, com "Empretecer o Pensamento é Ouvir a Voz da Beija-Flor".
Pode chegar a ser injusto listar os enredos engajados recentes e os que ainda estão por vir, tendo em vista que carnaval é rebeldia e questionamento, mas essa matéria traz dois casos que passaram e dois que ainda virão. Que seja feita ainda menção honrosa à Mocidade Independente de Padre Miguel que estampou um forte "Nós não vamos sucumbir" no desfile que homenageou a gigante Elza Soares, em 2020, no último desfile em que a "deusa" participou.
Paraíso do Tuiuti questionou a abolição da escravidão
Em 2018, o Paraíso do Tuiuti levou para a Sapucaí o enredo "Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?". A proposta da azul-e-amarela de São Cristóvão foi questionar os 130 anos da abolição da escravidão brasileira e as marcas deixadas por ela. Com um samba-enredo histórico e um desfile forte, pelas mãos do carnavalesco Jack Vasconcelos, a escola conquistou o vice-campeonato pela primeira vez em sua história.
A comissão de frente "grito de liberdade", que trazia pretos velhos que rompiam correntes da escravidão, inclusive, acabou impactando fortemente no quesito e influenciando o formato da apresentação de outras agremiações nos anos seguintes.
"Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti, o quilombo da favela
É sentinela na libertação"
Depois do desfile apoteótico, a agremiação ainda levou um enredo que falava indiretamente sobre o impedimento do ex-presidente Lula (PT) de concorrer nas eleições de 2018, através da história do Bode Ioiô, eleito vereador em 1922 em Fortaleza.
Ouça o samba do Paraíso do Tuiuti de 2018:
Composição: Cláudio Russo / Anibal / Jurandir / Moacyr Luz / Zezé.
Mangueira cantou os heróis que não estão na narrativa oficial
Depois de fazer um enredo questionador sobre a falta de apoio que as escolas recebiam do bispo Crivella, prefeito da cidade, em 2017, a Estação Primeira de Mangueira levou para a avenida o antológico “História para ninar gente grande”.
"Ao dizer que o Brasil foi descoberto e não dominado e saqueado; ao dar contorno heroico aos feitos que, na realidade, roubaram o protagonismo do povo brasileiro; ao selecionar heróis "dignos" de serem eternizados em forma de estátuas; ao propagar o mito do povo pacífico, ensinando que as conquistas são fruto da concessão de uma “princesa” e não do resultado de muitas lutas, conta-se uma história na qual as páginas escolhidas o ninam na infância para que, quando gente grande, você continue em sono profundo", dizia trecho da sinopse da Mangueira, escrita pelo carnavalesco Leandro Vieira.
O desfile, que trouxe a memória da vereadora assassinada Marielle Franco um ano depois de sua morte e de diversas lideranças negras e indígenas, foi do início ao fim recheado de questionamentos e estremeceu a Sapucaí. A Mangueira sagrou-se campeã naquele ano e seu samba entrou para a história.
Ouça o samba da Mangueira de 2019:
Composição: Danilo Firmino / Deivid Domênico / Mamá / Márcio Bola / Ronie Oliveira / Tomaz Miranda.
Empretecer o Pensamento é Ouvir a Voz da Beija-Flor
Com a herança do povo tchowkwe, de Angola, a maior campeã da era da Sapucaí, a Beija-Flor de Nilópolis, pretende "levar para a Avenida um enredo sobre a contribuição intelectual negra para construção de um Brasil mais africano" e "empretecer o pensamento do mundo".
"Muitas vezes enquadrada no campo do primitivo e do exótico, nossa forma sofisticada de ver o mundo é desvalorizada por estruturas coloniais racistas que desprezam a riqueza intelectual que produzimos. Por isso, mais do que nunca, é hora de inspirar mentes, trabalhar pelo 'reencantamento' de tudo, e talhar em madeira forte nossos saberes, feito sementes espalhadas por soberanos pássaros de ébano", diz trecho da sinopse divulgada pela azul-e-branca da Baixada Fluminense.
A Beija-Flor é a última escola a se apresentar na primeira noite de desfiles, no dia 22 de abril, com um samba forte que é a cara da escola.
Ouça o samba da Beija-Flor de 2022:
Compositores: J. Velloso, Léo do Piso, Beto Nega, Júlio Assis, Manolo e Diego Rosa
Salgueiro é Resistência em 2022
O Salgueiro, a Academia do Samba, vai levar o enredo Resistência para a Avenida, também na primeira noite de desfiles. A escola é a terceira desfilar. O enredo desenvolvido pelo carnavalesco Alex de Souza foi uma sugestão da filósofa Helena Theodoro, professora da UFRJ. Theodoro, que é referência em estudos etnorraciais e participou do Programão da Fórum no dia 23 de janeiro, foi a autora da sinopse da escola.
"Ser preto no Brasil e no Rio de Janeiro, hoje, é ter que lutar diariamente por respeito. Lutar para não ceder nem sucumbir à segregação e ao constrangimento promovidos pela sociedade e pelo Estado. É recusar os abusos e a submissão pela ausência de políticas públicas que poderiam promover melhores condições de vida. É não se deixar enganar pela pseudo 'democracia racial', sempre camuflada por hipocrisia, eufemismos ou subterfúgios mal disfarçados. Aqui, ser preto é, acima de tudo, um ato de RESISTÊNCIA", diz trecho do texto de apresentação do enredo da escola.
"E resistir é ter nossa história, antes negada e silenciada, ressignificada e recontada no carnaval, lugar de alegria, mas também de diálogo com o mundo.Ao som dos tambores ancestrais, o Salgueiro foi pioneiro na introdução da temática africana nas escolas de samba. Seguiu na contramão da narrativa “oficial” do país e deu vez e voz aos personagens, heróis e protagonistas pretos", afirma.
Ouça o samba do Salgueiro de 2022:
Composição: DEMÁ CHAGAS, PEDRINHO DA FLOR, LEONARDO GALLO, ZECA DO CAVACO, GLADIADOR, RENATO GALANTE
Além das duas, vale destacar a homenagem da Unidos de Vila Isabel ao gênio Martinho da Vila e o canto de Exu da Grande Rio, que prometem arrepiar a Avenida.