CINEMA

Até os Ossos: filme com Timothée Chalamet usa canibalismo para falar do amor e da “vida normal”

Aclamado pela crítica, o filme tem dividido opiniões do público por causa de suas cenas explícitas

Até os Ossos: filme com Timothée Chalamet usa canibalismo para falar do amor e da “vida normal”.Créditos: Divulgação
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“Uma concepção normativa de gênero pode desfazer nossa pessoalidade, sabotando nossa capacidade de perseverar em uma vida vivível. Outras vezes, a experiência de uma restrição normativa sendo desfeita pode desfazer a concepção prévia do quem se é, inaugurando, de maneira inesperada, uma concepção relativamente mais nova que tem, como objetivo, uma vivibilidade maior”, Judith Butler 

 

 

Estreou na última quinta-feira (1) a nova parceria entre o ator Timothée Chalamet e o diretor Luca Guadagnino (Me chame pelo seu nome,2017), o poético e denso “Até os Ossos” (2022), rodie movie que narra a história de Maren Yearly (Taylor Russell) e Lee (Chalamet), dois jovens que são canibais e partem juntos em uma jornada de descoberta e busca por um lugar em uma sociedade pautada pela normalidade que não comporta corpos e vidas fora de tal esquadro. 

O canibalismo é usado neste longa como uma alegoria para tratar de vários assuntos que rondam a sociedade: o amor, as sexualidades não héteras, civilização, o que nos torna humano e o que nos desumaniza e, principalmente, trata-se de um roteiro (David Kajganich) que quer discutir a normalidade e a vida dos “normais” ... em que momento da vida nos foi dito que somos e vivemos como pessoas normais? Em que momento e como alguns corpos são retirados da dita normalidade e alijados do convívio social? Essas e tantas outras questões permeiam todo o filme “Até os Ossos”. 
 

“Existem outros como eu?” 

 

O ponto de partida de “Até os Ossos” se dá com Maren, que vive de maneira nômade com o pai, pois, sempre que ela “come” alguém, eles precisam sair em fuga. E, logo de partida, o filme já avisa a que veio: durante uma festa com amigas, observamos uma interação sexual e lésbica de Maren, quando as duas jovens resolvem se entregar ao desejo, ela come um dos dedos da pretendente. 

Ao ser abandonada pelo pai, Maren resolve atravessar os EUA para encontrar a sua mãe (Chloë Sevigny), a quem nunca conheceu. Em sua jornada, a protagonista carrega consigo o seu pai, pois, antes de partir ele deixa para a filha uma gravação onde explica o que se passa com ela. 

Durante a sua viagem, Maren encontra com Sully (Mark Rylance), que diz à garota que a farejou. Neste momento, o roteiro do longa mergulha em reflexões que visam colocar em xeque a dita “vida normal”, mas também traz para nós o processo de autorreconhecimento e construção identitária. 

Maren não cansa de repetir para Sully: “eu pensei que fosse a única”. Aqui está a senha do longa para todas aquelas pessoas que vivem em variados armários impostos pelas normas sociais. Por exemplo. as pessoas LGBTIA+ que vivenciam semelhante processo de Maren e Lee: a descoberta do semelhante, de que não se está sozinho no mundo e que, acima de tudo, é preciso do Outro na jornada do reconhecimento e da construção do Eu.  

 

 

"Na sociedade do amor não há lugar para monstros" 

 

Quando Maren e Lee se encontram logo se reconhecem e se apaixonam, mas isso se dá fora da linha do amor romântico; os personagens até tentam vivenciar a experiência da “vida normal”, mas logo vão descobrir que, aos olhos da sociedade normativa eles não passam de monstros que não devem ser vistos à luz do sol. 

Durante a jornada, Lee e Maren vão descobrir que, por mais que sejam passáveis como “normais”, há poucos lugares reservados para eles: a prisão, o sanatório e o cemitério. Um dos momentos mais emocionantes é quando eles, juntamente, entendem o que são, entendem os seus respectivos prazeres sexuais e como são vistos pela sociedade. 

Se tirarmos o canibalismo de cena, o que temos são dois jovens que não se enquadram em nenhuma das categorias elaboradas pelos saberes médico, jurídico e policial. A heterossexualidade derrete diante do desejo que eles sentem um pelo outro, mas também no que sentem ao compartilhar outros corpos: a monogamia como ordem natural vem abaixo. 

“Até os Ossos” é um ensaio radical sobre o que nos torna humanos e normais, mas também sobre como vidas que não são enquadradas na normalidade são desumanizadas e patologizadas. 

Há uma cena emblemática: Lee e Maren estão sentados em uma plataforma que fica acima de um criadouro de vacas e refletem sobre a vida delas, sobre como elas se comunicam, sobre as amizades entre elas... aqui o filme que discutir alimentação e ojeriza, como se nos dissesse: “vocês que estão do outro e com nojo deles pelo fato de se alimentarem de carne humana, já refletiram sobre o destino dessas vacas? Que muito provavelmente será nos seus respectivos estômagos?”. 

Não seria toda a sociedade canibal? Boa parte das expressões que alicerçam a nossa comunicação está vinculada ao ato de matar e comer. No ato sexual, por exemplo, é muito comum a expressão “me come”, figura de linguagem que marca boa parte das relações sexuais. E se quisermos podemos radicalizar na interpretação e refletir sobre os modos de “vidas normais” no capitalismo: comendo e matando uns aos outros diariamente. 

 

 

A ficção chamada normalidade 
 

A ideia de que a normalidade e a heterossexualidade são ficções políticas com o objetivo de controlar a vida, não é algo novo. Há um vasto campo nas teorias feministas e queer que, desde os anos 1970, chamam a atenção para o fato de que a anatomia é sempre política e que dentro dessa operação há uma gama de dispositivos que visam enquadrar as sexualidades no binarismo de gênero (masculino x feminino) e entre normais e anormais. 

Maren e Lee não classificáveis sob a ótica da normalidade de gênero e sexual. Sempre que questionados “vocês são namorados?”, eles respondem negativamente: “somos amigos”. E claro, ninguém acredita neles. Nas relações pautadas pela heteronormatividade não há espaço para amizade entre um homem e uma mulher, apenas reprodução. 

Por fim, “Até os Ossos” lança várias questões sobre o chamado pacto civilizatório e os contratos sociais que ainda pautam as sociedades ocidentais e, conforme Lee e Maren avançam em sua viagem, fica óbvio que os contratos e os pactos correspondem aos mesmos fins que os tratados psicológicos, jurídicos e medicinais sobre o “normal”, ou seja, há muitas vidas excluídas e que por causa desse arranjo social vivem em uma eterna estrada e, talvez, nunca encontrem lugar. Todavia, esse não-lugar representado pelos protagonistas do longa metragem pode ser a melhor via, aquela que desemboca em uma saída da prisão normativa.