MILTON NASCIMENTO 80 ANOS

Milton Nascimento: a “voz de Deus" completa 80 anos

Milton vem de Minas e traz com ele, tanto os sons de carro de boi e viola caipira, quanto os Beatles e Miles Davis, os sons dos índios, dos negros, brancos. Nada pode ser tão universal quanto sua música

Milton Nascimento.Créditos: Divulgação
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"Se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento". Quando Elis Regina disse essa frase, lembrei imediatamente da primeira sensação que tive ao ouvir a gravação de “Travessia”, numa vitrolinha Sonata, lá pelo início da década de 70.

Foi a primeira vez que aquela voz maravilhosa de tenor, inconfundível, entrou na minha vida. De lá pra cá, a voz de Milton foi abrindo caminho para que percebesse outros sons, outras formas de fazer música.

A própria “Travessia” já trazia elementos inéditos, caminhos harmônicos novos, a bela melodia extensa e sinuosa e uma letra (de Fernando Brant) que evocava ao mesmo tempo enorme melancolia aliada a uma grande confiança e esperança na vida, no caminho.

Som Imaginário

Depois disso, vieram aqueles álbuns com o grupo Som Imaginário que misturavam instrumentos e sons latino-americanos com guitarras e sintetizadores vestindo canções de beleza arrebatadora. “Milagre dos Peixes”, “Canto Latino”, “Para Lennon e McCartney” e “Clube da Esquina”, a primeira delas, que abriu caminho para dois álbuns antológicos gravados em parceria com Lô Borges.

Milton vem de Minas e traz com ele, tanto os sons de carro de boi e viola caipira, quanto os Beatles e Miles Davis, o campo e a cidade, os sons dos índios, dos negros, brancos, enfim, nada pode ter ser tão universal quanto sua música. Nada tão jovem e novo.

Foi inevitável que o menino Bituca ganhasse o mundo, fosse reverenciado e regravado por alguns dos maiores cantores e instrumentistas de todas as partes do planeta. Nunca se deixou encaixar em uma só quadratura. Sempre quis e sonhou e produziu todos os sons possíveis. Na sua música cabem tanto as lavadeiras do Vale do Jequitinhonha quanto as cordas, trompas e tímpanos das mais elaboradas sinfônicas.

Foi da canção pop à Missa dos Quilombos, do saxofone de Wayne Shorter aos Tambores de Minas. Juntou uma turma de amigos geniais em seu entorno que ele, já consagrado, ajudou a lançar.

O Brasil não deve a Milton apenas a sua música maravilhosa. Deve a ele também a existência entre nós da música de Toninho Horta, Lô Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Tavinho Moura, Nivaldo Ornelas e muitos mais. Deve a ele também as palavras de Fernando Brant, Márcio Borges, Ronaldo Bastos e tantos outros.

80 Anos

Nesta quarta-feira (26), Milton completa inacreditáveis 80 anos. E eu (e acredito que milhões de outras pessoas pelo mundo) gostaria que ele vivesse mais 360 e mais e mais. E antes de cair no jargão inevitável que a obra o tornará imortal, reafirmo a sua eternidade desde aquele dia em que, anda menino, ouvi a sua voz, a voz de Deus. E Deus, é claro, é coisa pra sempre.

Certa vez, há mais de 30 anos, minha mãe ouvia o vocalise de abertura da gravação de “O que será (A Flor da Pele)”, canção de Chico Buarque gravada pelos dois no álbum “Geraes”, de Milton. De repente, com o olhar lá longe, ela perguntou: “como alguém pode cantar assim?”

“Pode, mas só se for o Milton Nascimento”, respondo a ela através do tempo.