Por Estevan Mazzuia*
"Ser mulher é difícil. Negra, ainda muito mais. Mas, se você parar porque é negra e é mulher, não chega a lugar nenhum"
E foi com isso em mente que Elza saiu de Padre Miguel, no coração do Planeta Fome, para se consagrar para a eternidade. No meio do caminho, usou e abusou de seu talento para marcar posição na luta contra o racismo, o machismo e a desigualdade social. Lutas que, definitivamente, não estão na pauta de Jair Bolsonaro. Ao menos, essa é a explicação que encontro para, até o momento, ele não ter divulgado uma única nota de pesar pelo falecimento de Elza.
Em seus mais de 70 anos de carreira, “Elzinha” flertou com o jazz, samba-jazz, sambalanço, bossa nova, MPB, soul, rock, música eletrônica e, claro, o samba.
Questionada por Ary Barroso, sobre o planeta do qual teria vindo, a julgar pela aparência com a qual se apresentou no programa Calouros em Desfile, em 1953, Elza assertou: “Do Planeta Fome”. Aos 22 anos, já era viúva e perdera dois filhos para a desnutrição.
O sucesso chegou em 1959, com Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins. Em 1999 foi eleita A Voz Brasileira do Milênio, pela inglesa BBC. Em 2002, gravou a canção “A Carne”, de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Mais atual, impossível.
Trabalhou até o último instante, deixando concluídas obras inéditas, algumas a serem lançadas às vésperas das próximas eleições, como era seu desejo. Aguardaremos ansiosamente.
Segundo breve apuração deste humilde colunista, em ao menos quatro oportunidades Elza foi tema de escola de samba.
A primeira delas em 1999, com o Sereno de Campo Grande, então no grupo E, última divisão do carnaval carioca. Com o enredo "Elza Soares, nega 1000 para o ano 2000", criado e desenvolvido por Mestre Saul, a agremiação somou 182 pontos, o suficiente para conquistar o segundo lugar, entre as seis desfilantes, e o acesso para o grupo D no ano seguinte. O desfile foi realizado na Rua Cardoso de Morais, na Zona da Leopoldina, e o samba foi composto por Jorge Pintoso, Peca, Zinho VK, Jennifer e Eraldo:
“Quando uma voz ecoar / Em solo varonil / É negra 1000 para o Ano 2000”
Já em 2003, a Foliões de Botafogo desfilou na Av. Rio Branco com o enredo “Elza Soares, a Zumbi do morro e do samba”, de Sérgio Murilo, desenvolvido por Stoelson Cândido. O resultado foi adverso: a escola terminou no penúltimo lugar entre as 12 escolas no grupo C, a quarta divisão, com apenas 162 pontos, e acabou rebaixada. Ao comparar Elza com Zumbi dos Palmares, a Foliões a exaltava como um símbolo de resistência. O samba foi composto por George GV, Ricardo Góes, Ronaldo, Geraldão e Thiago Fernandes, e puxado por Júlio Negão:
“Fez todo mundo sambar / Nossa gente te amar, e ser feliz… / A massa conta a história
Uma vida de glórias / O morro é sua raiz / Vem preservar tradições…
Vem cantar as belas canções… / Tu és exemplo de liberdade / No carnaval desta cidade!”
Em 2012 foi a vez de Elza receber uma homenagem da Unidos do Cabuçu, escola que teve boas passagens no grupo especial nos anos 80, e teve seu último desfile no grupo especial, em 1990, relembrado nesta coluna. Com o enredo “Cabuçu, dá a Elza na Avenida!”, criado e desenvolvido por Marco Aramha e Marcyo de Olliveira, a agremiação fechou as apresentações do grupo C (quarta divisão), já na manhã de 20 de fevereiro, na Estrada Intendente Magalhães.
A escola abordou diversas passagens da vida e carreira de Elza, mas não obteve sucesso: em meio a 15 concorrentes, terminou em 12º com 294 pontos, e não conseguiu o acesso. E justo em um ano em que as dez primeiras subiram!
Composto por Sylvinho, Jefferson, Lair e Laércio, e puxado por Marcelo Rodrigues, Dudu Mendes, Junior e D’Miguel, o samba dizia:
“É no show da bateria que a mulata vem sambar / Seu gingado tem magia, e feitiço no olhar
Comunidade vem cantar feliz da vida / Sou Cabuçu e "vai dar Elza na avenida"
Mas a maior homenagem recebida por Elza, indiscutivelmente, veio no último carnaval com desfiles, em 2020. Afinal, Elza nasceu em Padre Miguel e era Mocidade Independente, de coração. A verde e branco levou para a Sapucaí o enredo “Elza Deusa Soares”, criado e desenvolvido por Jack Vasconcelos, com samba de Sandra de Sá, Igor Vianna, Dr. Márcio, Solano Santos, Renan Diniz, Jefferson Oliveira, Professor Laranjo e Telmo Augusto, puxado por Wander Pires. Uma obra de arte, à altura da homenageada:
“Lá vai, menina / Lata d’água na cabeça / Vencer a dor que esse mundo é todo seu
Onde a “água santa” foi saliva / Pra curar toda ferida que a história escreveu
É sua voz que amordaça a opressão / Que embala o irmão / Para a preta não chorar (bis)
Se a vida é uma ‘aquarela’ / Vi em ti a cor mais bela / Pelos palcos a brilhar
É hora de acender no peito a inspiração / Sei que é preciso lutar com a armas de uma canção
A gente tem que acordar, da “lama” nasce o amor / Quebrar as “agulhas” que vestem a dor
Brasil, enfrenta o mal que te consome / Que os filhos do planeta fome
Não percam a esperança em seu cantar / Ó nega, “sou eu que te falo em nome daquela”
Da batida mais quente, o som da favela / É resistência em nosso chão
“Se acaso você chegar” com a mensagem do bem
O mundo vai despertar, Deusa da Vila Vintém / Eis a estrela…
Meu povo esperou tanto pra revê-la
Laroyê ê mojubá… liberdade / Abre os caminhos pra Elza passar… / Salve a Mocidade!
Essa nega tem poder, é luz que clareia / É samba que corre na veia”
Com 269 pontos, a escola obteve o terceiro lugar no grupo principal, e voltou para o desfile das campeãs, no sábado seguinte. Nada mal.
Elza também fez suas homenagens às escolas de samba: cantou Salgueiro, Portela, Mangueira, Império Serrano, Unidos de Vila Isabel, Unidos da Tijuca e União da Ilha em seus sambas. E foi a primeira mulher a puxar um samba enredo na avenida, no Salgueiro, em 1969. Anos mais tarde, também puxaria sambas da Cubango, de Niteroi, e da sua Mocidade, claro.
Mas não se pode falar de Elza sem falar de Garrincha, o “anjo das pernas tortas”, bicampeão do mundo som a seleção brasileira nas copas de 1958, na Suécia, e 1962, no Chile, onde acabaram se conhecendo. Como ele era casado, o “affair” correu em segredo, no início. Em 1966, oficializaram o relacionamento, passando a morar juntos. Divorciaram-se em 1982.
Apesar do casamento ter sido muito conturbado, Elza afirmava que Garrincha fora o grande amor de sua vida.
Ele morreu em 20 de janeiro de 1983. 39 anos depois, num mesmo dia 20 de janeiro, foi a vez dela partir. Dia de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro.
Coincidência ou destino, não importa.
Valeu, Elzinha! Sua voz rouca ecoará entre nós para sempre, contra o racismo, o machismo e a desigualdade social. A resistência será nossa homenagem e nossa gratidão.
Vai passar.
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.