Por Estevan Mazzuia *
A distopia imaginada pelo Arranco do Engenho de Dentro no carnaval de 1989 se aproxima de nossa realidade no festival de inversões proporcionado pelo desgoverno federal
“Quem vai querer?”, apregoavam os índios, oferecendo quinquilharias aos portugueses, e conquistando as caravelas…
“Quem vai querer”?, clamavam as flores e as aves, oferecendo humanos em vasos e engaiolados…
Extasiados, todos cantavam:
“Vem, vem me querer… / Eu acendi a luz da sedução
Quem, quem vai querer / Ser mais um elo na corrente da ilusão?”
No delírio dos carnavalescos Mílton Siqueira e Sérgio Faria, vendidos se tornavam vendedores, explorados se tornavam exploradores.
Bebês ofereciam babás, frutas e verduras negociavam feirantes, os craques vendiam os cartolas, e os réus condenavam os juízes, que não mais ofereciam justiça, mas sentenças (se é que me entendem).
“A terra não deixou matar a flor / O índio conquistou a caravela
Ai, amor, amor! / Vem ser a dama da noite mais bela!
O craque vende o cartola / O réu condena o juiz
A mulata deita e rola / Na inversão do meu país”
Foi assim que o Arranco do Engenho de Dentro, agremiação fundada em 21 de março de 1973, abriu o desfile das 18 escolas do grupo especial do Rio de Janeiro, em 05 de fevereiro de 1989.
Originada de um bloco de sujos que, nos anos 50, “arrancava” as pessoas de suas casas, a escola havia desfilado no grupo principal em 1978, sendo rebaixada. Campeã do segundo grupo em 1988, voltava ao convívio das grandes escolas, naquela que seria, até hoje, sua derradeira aparição.
Com uma plástica simples, mas eficiente, um “chão” (termo usado para referenciar o elemento humano da escola, os foliões) arrebatador, e um samba espetacular, de Juan Espanhol, Jarbas da Cuíca, e Sylvio Paulo (que também puxou a obra na avenida), o Arranco superou todas as expectativas e abriu em grande estilo aquele que, para mim, é o maior carnaval da história do Rio de Janeiro (não é coincidência que seja o terceiro desfile daquele ano que relembro nesta coluna, em que pretendo, aos poucos, relembrar muitos mais).
Infelizmente, o resultado não foi dos melhores: com 172 pontos, a escola terminou em 17º lugar e voltou ao segundo grupo. Mas o desfile de 1989 entrou definitivamente par a história, sendo lembrado com carinho e saudosismo pelos amantes do carnaval. Em 2005 a escola reeditou o enredo, no terceiro grupo, e conquistou o acesso, com um vice-campeonato, mostrando que “Quem vai querer?” permanece forte.
Esse desfile me tingiu como um raio essa semana. Há algum tempo venho reparando em como as falas do “desprezidente” e seus torcedores são eivadas de inversões. JB e seus cúmplices medem o mundo com suas réguas, e acabam revelando as verdadeiras intenções por trás de suas manifestações.
Por exemplo, em “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, tenta se omitir o entreguismo e a descrença. Um presidente que se envolve, reiteradamente, nas escolhas eleitorais de outras nações, não está colocando o Brasil acima de tudo. Uma pessoa que promete exterminar quem pensa de maneira diferente, não está colocando Deus acima de todos.
Tudo é sintomático: ao propagar a ideia de que urnas eletrônicas não são confiáveis, o que se quer, na verdade, é a volta do voto de cabresto que somente o voto impresso proporciona. “Ah, mas o eleitor não levará o voto impresso para casa”, argumentarão os incautos, os acéfalos e os canalhas.
Pois bem. Uma urna recebe em torno de 400 votos. A eletrônica não permite que se saiba que um determinado voto foi para o candidato A para presidente, B para governador, C para senador, D para deputado federal e E para estadual, uma vez que o sistema embaralha essas combinações. Com o voto impresso, a combinação A+B+C+D+E estará vinculada a um único voto, como era nas cédulas de papel. A probabilidade de essa combinação aparecer no meio de 400 votos, é bastante remota, ante o número de candidatos, particularmente para deputados. Sabendo que, se essa combinação não aparecer em uma possível recontagem, o miliciano que toma conta de sua rua ficará bastante chateado, “quem vai querer” se arriscar e não votar conforme a instrução?
Quando fala que é um defensor da democracia, e da Constituição, não é preciso mais do que dois neurônios para perceber que JB odeia as duas. Suas ideias “não correspondem aos fatos”. JB não consegue governar em um sistema democrático, porque não tolera ser contrariado. E não consegue argumentar em defesa das ideias que saem de seus intestinos.
As inversões não ocorrem apenas nas falas. O tal ministério de “especialistas” é o desfile do Arranco do começo ao fim.
No meio ambiente, Ricardo Salles atuava em defesa de madeireiros, garimpeiros e do agronegócio. Viu na pandemia, que ceifou a vida de 600 mil brasileiros (numa estimativa bem conservadora, considerando a subnotificação dos números oficiais), a oportunidade para passar a boiada de leis que revogam aquelas que só atrapalhavam a destruição ambiental.
Na educação, tivemos de tudo: um colombiano que não conhecia nada de nossa realidade, um patético semianalfabeto que odiava as universidades federais, e agora um que defende agressão de crianças, exclusão de pessoas com deficiência, e redução do acesso da população ao ensino superior. A educação pública está paralisada no Brasil. E a conta vai chegar.
Na ciência e tecnologia, um vendedor de travesseiros que assiste, passivamente, ao desmonte do sistema de fomento à pesquisa, com corte de bolsas de estudo e verbas de financiamento.
Na Fundação Palmares, um cidadão que nega a escravidão, assedia servidores, e acha que livros que defendem ideias diferentes das suas devem ir para o lixo.
Na cultura, um ator malsucedido que persegue anti-fascistas (aqui a coisa extrapola qualquer sutileza).
Nas relações internacionais, tivemos um cidadão que, em dois anos, destruiu todas as relações internacionais construídas ao longo de dois séculos, e se vangloriou em nos tornar uma nação pária.
Na economia, um especulador que faz o que pode para aumentar o abismo social que havia sido levemente reduzido nos últimos anos, escolhe quem não deve ter acesso a determinados bens de consumo, e acha razoável que a energia fique um pouco mais cara, num país em que as pessoas voltaram o cozinhar em fogões a lenha.
Por fim, na saúde, tivemos dois ministros que foram demitidos por… Defenderem a saúde! Em seu lugar, foi colocado um general do exército “especialista em logística”, que mandou pro Amapá uma carga de insumos destinada ao Amazonas, e não tinha a mais vaga ideia do que era o Sistema Único de Saúde, nem de onde fica o Nordeste. Atrasou a compra de vacinas porque as ofertas disponíveis eram extremamente sérias e não permitiam o recebimento de propina, e implantou uma organização criminosa em sua pasta, ao que indicam as investigações da CPI que analisa o caso.
Em sua completa inversão de valores, Jair trabalha para que todos os brasileiros possam ter acesso a fuzis. Mas não demonstra o mesmo empenho para que os brasileiros tenham acesso a feijões.
E assim chegamos ao momento em que 25% dos brasileiros falam em “nova independência”, no próximo 7 de setembro, o que implica, segundo suas vontades, na extinção da democracia e do Estado Democrático de Direito, e na revogação da Cata Magna de 1988, os três grandes empecilhos aos desmandos de JB.
Não sei vocês. Mas eu não vejo a hora de ele realizar seu delírio. Quanto antes, mais cedo estaremos livres. Eis a ironia da última inversão que destaco aqui. Jair já avisou inúmeras vezes que sua tolerância havia se acabado. A cada vez que repete essa ladainha, revela mais um pouco de sua fraqueza.
O Brasil está machucado demais. E nada indica que o quadro possa se reverter até 31 de dezembro de 2022. Cedo ou tarde, ele irá para o tudo ou nada, e será muito ruim. Quanto mais tarde, mais tempo ele ganha destruindo o país que diz amar (olha o Arranco aí de novo…).
Quanto mais o tempo passa, menos pessoas respondem “sim” quando JB apregoa “’quem vai querer’ entrar nessa comigo?”
“Enquanto há samba / A festa continua!
Canta meu povo / Que a avenida é sua”
Jair segue sambando para seu povo, pois sabe que o fim da festa se aproxima.
E com essa inversão final, chegará nossa vez de retornar às avenidas, sambar, e cantar os versos de Juan Espanhol, Jarbas da Cuíca, e Sylvio Paulo.
Tal qual a mulata, vamos deitar e rolar com a derradeira inversão deste país, que há de nos recolocar nos eixos.
“E no avesso que criei, você pode ser o rei, desta folia!”
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.