Luz, câmera, ação: em cena, um presidente com o filme queimado

Na coluna de hoje, Tuta do Uirapuru lamenta o incêndio que destruiu parte do abandonado acervo da Cinemateca Brasileira e relembra a homenagem que a Caprichosos de Pilares fez à sétima arte em 1988

Ilustração: DGC
Escrito en CULTURA el

Por Estevan Mazzuia *

Não foi um acidente. Acidentes não avisam que irão ocorrer.

O incêndio que atingiu o edifício da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, em São Paulo, na noite da última quinta-feira, foi um crime anunciado, conforme manifesto público dos trabalhadores da instituição. O desgoverno federal demitiu o corpo técnico da Cinemateca em 08 de agosto de 2020, deixando o acervo ao deus-dará. Muita coisa já havia se perdido, por falta de conservação, eis que é fundamental o acompanhamento diário do material, evitando-se sua deterioração.

Embora não se tratasse da maior parte do acervo, depositada no prédio da Vila Clementino, inúmeras obras e documentos do cinema brasileiro foram perdidos para sempre. Ainda que parte tenha sido digitalizada, perderam-se os originais. Um dano irreparável, que inclui documentos do Arquivo Embrafilme, Instituto Nacional do Cinema, Conselho Nacional do Cinema e Arquivo Tempo Glauber.

Dentre os audiovisuais, parte do acervo da Pandora Filmes, cópias de cinejornais, trailers, diversos filmes potencialmente únicos, parte da produção discente em 16mm e 35mm da Escola de Comunicações e Artes da USP, e do acervo em vídeo do jornalista Goulart de Andrade.

Além de equipamentos e mobiliário de valor museológico, e necessários para a manutenção de equipamentos obsoletos necessários para a exibição de alguns materiais.

É mais uma parte de nosso patrimônio histórico-cultural que se soma às já perdidas no incêndio de 2016 da própria Cinemateca, e no de 2018 do Museu Histórico Nacional, frutos de um projeto de governo iniciado na gestão de Michel Temer e mantido pelo seu sucessor.

Vale lembrar que o Ministério Público Federal já havia ajuizado uma ação civil pública, alegando que a Cinemateca estava sob “estrangulamento financeiro e abandono administrativo”.

O Secretário Especial de Cultura, Mário Frias, tratou de atribuir a culpa do incêndio ao PT, que há cinco anos está longe do Palácio do Planalto. Seguimos assim: as desgraças, a gente coloca na conta do PT; as obras iniciadas, ou mesmo concluídas pelo PT, a gente inaugura e coloca na nossa conta, “taokay”?

Como um apaixonado por cinema, eu já estava preocupado há muito tempo com a situação de abandono da Cinemateca. Com tantos avisos de uma possível tragédia, eu imaginei que BolsoNero não daria uma bandeira desse tamanho. Ingenuamente, achamos que tudo tem limites. Quando nos damos conta de onde nos metemos, percebemos que não é bem assim.

Como tudo que não diz respeito à sua reeleição, ele está se lixando. Um homem que nunca leu um livro na vida, que possui um vocabulário limitadíssimo, que acha que 4-5=9, não dá valor a absolutamente nada que seja relativo a nosso patrimônio histórico cultural.

E me dói muito ver gente ligada a esses setores, apoiando esse senhor.

No universo do samba, então, ele se tornou um tabu, tamanha a quantidade de comparsas que ele nutre no meio. Política virou assunto proibido, como se o carnaval não fosse uma manifestação política, e o samba uma forma de resistência cultural. Tempos bicudos.

A tragédia, entretanto, me fez rememorar um delicioso desfile da simpática Caprichosos de Pilares, no carnaval de 1988.

A escola foi a segunda a desfilar na noite de 15 de fevereiro, segunda-feira de carnaval, com o enredo “Luz, Câmera, Ação”, de Renato Lage e Lílian Rabelo.

Os 4 mil componentes, distribuídos em 31 alas, cantaram e sambaram ao som da obra de Mílton de Luna, Zé Maria D’Angola, Grajaú, Jacó, Zeca do Lins e Madeira, puxada por Carlinhos de Pilares:

“Ô Iaiá, seu vaga-lume, por favor / Quero um cantinho / Escondidinho pra ficar com meu amor
(…)
Tem comédia, tem piada / Musical com batucada / E no velho oeste eu vi / O Nordeste em ação Ai, coração”

A original comissão de frente trazia lanterninhas em volta de um casal de namorados, que ocupava dois assentos de uma longarina, que fazia as vezes de “mini alegoria”, numa espécie de precedente das enormes alegorias usadas em comissões de frente atuais.

O abre-alas representava uma sala de cinema, dando início à viagem proposta pela escola.

Comédias, épicos, filmes de horror, westerns, aventuras, desenhos animados, eróticos e musicais eram os gêneros representados nas fantasias e alegorias, distribuídos em setores apresentados por tripés em forma de grandes claquetes.

Maurício do Vale reincorporou o Antônio das Mortes, o caçador de cangaceiros dos filmes de Gláuber Rocha, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”.

Ney Latorraca, Glória Pires, Antônio Pitanga, Norma Bengell, Arnaldo Jabor e Otávio Augusto estavam entre as muitas personalidades da indústria cinematográfica que desfilaram na escola.

As baianas representavam as “estrelas do cinema”.

Os 300 ritmistas eram comandados por Paulinho Botelho, e o pavilhão era defendido por Patrícia e Tiãozinho.

No carro da ficção científica, à frente de uma escultura de King Kong, havia uma faixa, onde se lia: “Espaço reservado ao talento brasileiro que não tem apoio financeiro”.

A última ala fazia menção ao Leão de Ouro do Festival de Veneza, concedido a “Eles Não Usam Black-tie”, de Leon Hirszman, falecido em setembro de 1987, pouco antes daquele carnaval.

Finalizando o desfile, uma alegoria trazia esculturas dos principais prêmios de cinema do mundo, do Kikito de Gramado ao Oscar, passando pela Palma e pelo Urso de Ouro, entre outros.

Com 207 pontos, a Caprichosos conquistou o oitavo lugar entre 16 escolas, terminando empatada com a recém-promovida Tradição, e com a Mocidade Independente de Padre Miguel, para onde o casal de carnavalescos se mudaria dois anos depois, sendo campeões com antológico “Vira Virou, a Mocidade Chegou”.

Hoje, a produção cinematográfica brasileira corre o risco de ser paralisada, como ocorreu durante o governo Collor.

Em verdade, com a cultura brasileira nas mãos de um péssimo e frustrado ator de “Malhação”, toda a produção do setor está ameaçada, não apenas o cinema.

O decreto presidencial assinado na última semana, que alterou o Pronac (a odiada e incompreendida Lei Rouanet), anunciou uma forte tendência de perseguição ideológica a tudo que possa ser visto como antifascista. Eu fico aqui tentando entender esse ódio do desgoverno federal a antifascistas.

Vivemos um filme de terror que parece não ter fim. Uma comédia sem-graça, que caminha para se tornar um bangue-bangue às vésperas das eleições presidenciais de 2022.

Espero, ao menos, que o final seja feliz.

Não precisamos de Oscar, nem de nenhum prêmio do tipo. Só de ter de volta um pouquinho da dignidade que já tivemos, num tempo não muito distante, eu já agradeceria ao roteirista desse drama surrealista que é o Brasil atual.

P.S. A coluna de hoje é dedicada a Oscar Lorenzo Jacinto de la Inmaculada Concepción Teresa Díaz, o Oscarito, um dos maiores comediantes do cinema brasileiro, falecido em 04 de agosto de 1970, há 51 anos.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.