Por Estevan Mazzuia *
Durante minha infância, nos anos 80, eu não tinha tempo de desenvolver relação afetiva com nosso dinheiro. As moedas praticamente não circulavam, porque muito pouco compravam. As cédulas desapareciam com a mesma velocidade que surgiam: no começo eram objeto de cobiça pois, quando lançadas, possuíam valor suficiente para uma bela compra de supermercado; quando deixavam de circular, já haviam perdido para a balinha ou o chiclete, na hora do troco.
A grande contribuição da hiperinflação em minha vida foi o descobrimento dos juros compostos: eu ficava intrigado com aquelas inflações mensais de dois dígitos que se transformavam em números de quatro dígitos ao cabo de um ano. Até que um ano resolvi anotar, mês a mês, em um caderninho. Trinta daqui, quarenta dali, vinte acolá, e zás: a conta não fechava. A soma das doze inflações mensais não chegava aos pés do número divulgado da inflação anual. Inconscientemente, eu havia me auto introduzido o conceito de “fake news”. A parte mais legal é que eu tinha lá meus dez anos, e hoje temos um Presidente da República de 66 anos, com formação militar, que revela conhecimentos matemáticos muito próximos daqueles que eu tinha.
Hoje, que usamos as mesmas cédulas e moedas há quase 30 anos, não desenvolvemos afeto por outros motivos. Sumiram os Barbosas, Dumonts e Kubitscheks, dando lugar a uma insossa figura da República. Por outro lado, nos aproximamos das tartarugas-marinhas, garças, araras, micos-leões e onças-pintadas. Embora estejamos sempre a fim de nos encontrarmos com uma bela garoupa. Nessa brincadeira, os beija-flores acabaram extintos. Em compensação, surgiram os lobos-guarás, criados para reduzir pela metade a quantidade de malas necessárias para que pessoas extremamente honestas pudessem comprar imóveis em dinheiro vivo, como por tantas vezes fez JB, o matemático. O lobo facilitou a vida de muitos amigos dele também, em outras negociatas igualmente honestas, que deixarei para outras oportunidades.
Aqueles anos 80, e o início dos anos 90, foram marcados por inúmeras tentativas de conter a inflação, herança do glorioso “regime militar”. Com Dilson Funaro, em 1986, vieram os Planos Cruzado I e II; com Luiz Carlos Bresser Pereira, o Plano Bresser, em 1987; com Maílson da Nóbrega, em 1988, o “feijão com arroz”, e o Plano verão, em 1989. Todos no governo Sarney.
A gente ia ao mercado pela manhã, porque à tarde os produtos estariam mais caros. Eu me lembro muito bem dos funcionários encarregados de etiquetar os produtos com os preços (leitura de código de barras era coisa de ficção científica), atuando freneticamente com suas maquininhas, uma espécie de pistola, onde o gatilho, ao ser apertado, emitia a etiquetinha com o novo valor. Cada “tic” era um tiro em nosso bolso.
Via de regra, a cada plano se cortavam três zeros da moeda. Cédulas de 1000 cruzados ganhavam um carimbão, onde se lia 1 cruzado novo. Cruzeiro e cruzados, novos e velhos, uma bagunça acompanhada de medidas que tinha resultado certo: o insucesso.
A esperança com a eleição de Collor começou a minguar logo no primeiro dia de seu governo, com o Plano Brasil Novo (ou Plano Collor), da ministra Zélia Cardoso de Mello, que confiscou as economias de todos os brasileiros, prometendo a devolução em 18 meses. Todavia a marcha da inflação seguiu a pleno vapor, e o dinheiro devolvido não valia mais nada, e muita gente teve que recorrer à justiça, para reduzir seus prejuízos.
Às vésperas do carnaval de 1991, foi lançado o Plano Collor II. Mas, a essa altura, ninguém mais acreditava no governo “descollorido” e na galhofa dos pacotes econômicos.
Parte dessa história foi contada pela Mocidade Alegre, quinta escola a desfilar em 09 de fevereiro de 1991, primeiro ano em que o desfile paulistano foi realizado no Anhembi, ainda com arquibancadas tubulares.
Com 2000 mil componentes, distribuídos em 17 alas, 7 alegorias, 5 quadripés e 4 tripés, a “Morada do Samba” apresentou o enredo “A História se Repete”, de Renato Cabral.
Os 200 ritmistas eram comandados por Mestre Donela, e o pavilhão defendido por Murilo, o “Bailarino”, e Sônia.
Os primeiros setores da escola remetiam ao Império, iniciado pouco depois de D. João VI retornar a Portugal levando boa parte de nossas riquezas. A primeira crise brasileira surgiu antes mesmo de nossa independência. Uma alegoria apresentava ratos saindo do brasão imperial.
A escultura do rinoceronte Carareco (uma fêmea, na verdade) estava presente no carro que aludia ao uso do voto como revolta popular. Em outubro de 1959, o mamífero, emprestado pelo zoológico do Rio de Janeiro ao da capital bandeirante, recebeu quase 100 mil votos para vereador em São Paulo. Coisas que as urnas eletrônicas não permitem mais. Não tem que ter voto impresso, muito menos auditável. Tem que voltar aquele pedaço de papel onde a gente podia escrever carinhosas mensagens aos governantes. Por mais Cacarecos, e menos cacarecos.
Zélia não poderia ser deixada de fora. Um imenso “pacotão” dourado exibia sua imagem, em aquarela, dando uma “banana” para o povo. Era o carro “aquaZélia do Brasil”.
Outra alegoria trazia o dragão da inflação, bichinho que anda doidinho pra voltar a cuspir fogo sobre nós. E a sátira aos bancos, grandes parceiros dos governos “na alegria e na alegria”, estava em dois quadripés, em formato de caixas eletrônicos do “Tutú” e do “Braduro”.
Vale lembrar que o carinho aos bancos não se perdeu com o tempo. Quando quase 600 mil mortos ainda representavam um pesadelo até para o maior responsável por nossa desgraça, em março de 2020, o governo tratou de injetar R$ 1,2 trilhão do meu e do seu dinheiro nessas simpáticas instituições, a fim de que seus CNPJs não se perdessem em meio à pandemia.
O samba de Baixinho do Banjo, Xavier, Deolindo e Luiz Carlos da Vila (o próprio) era puxado por Carlão Maneiro, que também assinava a obra, e trazia versos interessantes:
“Surge a cada plano uma esperança ôô ôô ôô / Desde o tempo do império a história se repete
(…)
E o povo vai tocando como pode / Quem não pode se sacode, deixa acontecer
A ciranda do dinheiro é fatal / Faz dançar a sociedade / E o tesouro nacional
(…)
Cruzeiros e cruzados / Tudo bem empacotado /E o povo resistiu
E hoje a Mocidade faz cultura na cidade / Coisas do Brasil”
Eu era muito fã do Carlão. E nossas vidas acabaram se cruzando. Embora eu não fizesse planos de me casar, tive uma namorada que resolveu que ficaríamos noivos. Obcecado por efemérides, eu topei, com a condição de que a festa fosse na data em que completei 10.000 dias de vida. Carlão, quem diria, era namorado de sua mãe, e esteve presente na celebração. Antes mesmo disso, participei do concurso de escolha do samba enredo em uma agremiação paulistana, e ele era um dos autores de uma obra concorrente. E não é que a minha obra avançou, deixando a dele pelo caminho? Motivo de grande honra para mim. Abraços saudosos, Carlão Maneiro!
Bem, embora animado, o desfile da Mocidade esteve aquém de suas concorrentes. Com muitos problemas de acabamento nas alegorias, a escola conseguiu apenas o sexto lugar entre as dez escolas do grupo especial, com 257 pontos. Era uma época em que a escola ficava sempre ali, no meio da tabela, longe do título, conquistado em 1980 pela última vez, e do rebaixamento. Felizmente a comunidade do bairro do Limão deu a volta por cima, voltou a ser campeã em 2004, e hoje entra na avenida sempre como uma das favoritas.
Nossa economia finalmente entrou nos eixos com o Plano Real, de 1994, decolando de vez nos primeiros anos deste milênio.
Contudo, após alguns problemas no voo, entregamos o manche a um comandante inepto e a um copiloto inapto. Uma bela dupla.
O comandante é franco defensor do pessoal da primeira classe. Recentemente, mostrou sua indignação com o tratamento aos ricos do Brasil, ao rechaçar a tributação de grandes fortunas. Disse que ser rico no Brasil se tornou um crime. Não, senhor comandante. Ser rico no Brasil nunca foi crime. Não tenho notícias de nenhuma operação da polícia em condomínios fechados de bairros nobres, atirando em quem estiver portando um guarda-chuva em “atitude suspeita”.
O crime sempre foi ser pobre, e seu copiloto sabe muito bem disso. Pobres não têm o direito de viajar para fora do país, nem de cursar ensino superior, entre outras atividades reservadas apenas para quem explorou por séculos o trabalho alheio.
Mas como, para vossas tristezas, o voto de um pobre vale tanto quanto o de um rico, e há muitos mais pobres do que ricos, o senhor resolveu dar uma atenção a esse pessoal que um ídolo seu desprezava. Preferia o cheiro de cavalos, ao “cheiro de povo”, lembra?
Resolveste ampliar o Bolsa Família, aquele mesmo projeto que o senhor criticou à exaustão, em governos anteriores. Quem diria, hein?!
Com o caixa baixo, em virtude da distribuição de mimos para a compra de apoio, seu inapto copiloto apresentou um plano de calote no pagamento dos precatórios federais. Assim, com uma canetada “bic”, o senhor poderá fazer com que os credores do governo arquem com as custas de seu projeto de reeleição.
É ótimo que o senhor finalmente tenha reconhecido a importância dos projetos sociais iniciados nos governos anteriores, embora suas reais preocupações não pareçam nada republicanas. O que é preocupante é que o senhor, para proteger os mais abastados deste país, esteja utilizando uma verba com destinação pré-definida, e postergando o pagamento de dívidas, acrescidas de seus consectários legais, a quem vier a sucedê-lo. No popular, fazendo caridade com chapéu alheio.
Em outros tempos, isso se chamou “pedalada fiscal”.
Em outros tempos, isso levou milhões às ruas, pedindo a cabeça de uma presidenta.
Em outros tempos, até o senhor se revoltava com isso, “em nome de Jesus, da família brasileira” e em memória de um “notável cristão” que se regozijava enfiando ratos nas vaginas de quem não rezasse o mesmo terço.
Em outros tempos, não é comandante?
Hoje, você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão.
Amanhã, vai ser outro dia.
Ah, vai.
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.