O mundo de hoje precisa vestir a camisa da verde esperança

Na coluna de hoje, Estevan Mazzuia cobre-se de talismãs, invocando melhor sorte ao povo brasileiro, e relembra o último título do Camisa Verde e Branco no grupo principal do carnaval paulistano.

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Por Estevan Mazzuia *

Esta semana resolvi homenagear a Associação Cultural e Social Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco, detentora de 14 títulos no carnaval paulistano, nove deles no grupo principal das escolas de samba.

Sua origem remonta a 1914, quando Dionísio Barbosa criou o Grupo Carnavalesco Barra Funda, fazendo com que muitos defendam que o Camisa, hoje, é uma agremiação centenária. Com camisas verdes e calças brancas, seus integrantes eram confundidos com os integralistas, e foram proibidos de desfilar em 1936.

Em 4 de setembro de 1953 Inocêncio Tobias decidiu reorganizar o grupo carnavalesco, fundando o Cordão Mocidade Camisa Verde e Branco (daí usar-se, até hoje, a expressão “o Camisa”, e não “a Camisa”), campeão em 1954, 1968, 1969 e 1971.

Com a decadência dos cordões, o Camisa tornou-se escola de samba em 1972, sagrando-se tetracampeã em 1974/75/76/77. Sob o comando de Inocêncio, veio ainda o campeonato de 1979, com o antológico “Almôndegas de Ouro”, uma pitoresca homenagem a Minas Gerais.

O filho de Inocêncio, Carlos Alberto, assumiu o comando da escola após a morte do pai, em 1980, apoiado por Magali, sua esposa, e Dona Sinhá, sua mãe, considerada uma das damas do samba paulistano, que faleceria em 1988. Sob o comando dele vieram os campeonatos de 1989 e 1990. Magali assumiu a escola em 1991, após o falecimento de Carlos, conquistando o tri em 1991, e o vice em 1992, ano em que o título da Rosas de Ouro foi muito contestado.

Para o carnaval de 1993 o Camisa manteve Augusto de Oliveira, carnavalesco do ano anterior, que desenvolveu o enredo “Talismã”, com samba memorável de Carica, Soró e Luisinho SP, puxado por Juscelino, Birinha e Cogumelo:

“O mundo de hoje precisa / Vestir a camisa da verde esperança

A nossa aliança com a liberdade / Vem da Amazônia, o nosso pulmão

O amuleto verde da respiração.”

A identificação do enredo com a escola era profunda: seu símbolo é um trevo de quatro folhas, e Talismã, nascido Octávio da Silva, um de seus maiores compositores. Carioca, Talismã mudou-se para São Paulo a convite de Seu Inocêncio, atuando como carnavalesco do Camisa entre 1968 e 1971. Trabalhou também junto a Rosas de Ouro, Morro de Casa Verde e Unidos de Vila Maria.

Compôs o hino do Camisa (“Sou Verde e Branco / Até a morte! / Do verde e branco, não me separarei”), em parceria com Jordão, e os sambas de 1968, 1969 e 1971 (“Sonho colorido de um pintor”, gravado por Tom Zé) do ainda cordão carnavalesco, e de 1982, já da escola de samba.

Programado para o dia 20 de fevereiro, aquele desfile prometia ser uma prova de resistência, com doze escolas ao longo de quatorze horas. Ainda com arquibancadas tubulares, o sambódromo do Anhembi não possuía a mesma capacidade de hoje, e haveria mais gente desfilando do que assistindo.

A parte mais esperada da festa ficou reservada para a manhã do dia 21, quando desfilariam a campeã e as duas vices do ano anterior: Rosas de Ouro, Camisa e Vai-vai, esta encerrando as apresentações.

Antes da então campeã, o Camisa entrou na avenida sob os primeiros raios de sol. O preciso uso de cores de Augusto de Oliveira explorou perfeitamente os contrastes com o alvorecer.

Eu estava presente e ainda consigo sentir, sob meus pés, a vibração das arquibancadas tubulares. Como dizia meu avô, o Camisa Verde era um caso sério.

A comissão de frente abusava da originalidade: seus integrantes representavam duendes sentados sobre cogumelos, que eram as saias das fantasias, sobre os quais repousavam falsas perninhas de espuma das criaturas, causando um efeito muito interessante durante a evolução dos bailarinos.

Com 3500 componentes, divididos em 17 alas e 12 carros alegóricos, a escola homenageava seus 40 anos (o Camisa é um justificado caso de agremiação com elevadíssima autoestima, quase sempre prestando auto-homenagens), viajando pela história da relação humana com amuletos.

O abre-alas trazia, como não poderia deixar de ser, o trevo de quatro folhas, símbolo da escola. A segunda alegoria representava, por meio de animais, os elementos da natureza. O terceiro carro, um dos mais belos, aludia às antigas civilizações, por meio do altamente “carnavalizável” Egito, com esculturas azuis e detalhes dourados. Esplendoroso.

Mandalas e cristais compunham a quarta alegoria, mais simples, e esculturas de dois elefantes destacavam-se na alegoria seguinte. Virados de costas para o sentido do desfile, para dar sorte, claro.

Baralhos e ciganos eram retratados na sexta alegoria. A sétima, representando a suntuosidade e grandeza da Igreja Católica (quem não carrega seus santinhos e medalhinhas?), tinha à frente o Grupo Ornitorrinco, comandado por Cacá Rosset, presença constante nos desfiles da verde-e-branco àquela época.

Gabi era o primeiro mestre-sala e Vivi, a primeira porta-bandeira. Talvez o último casal dos tempos românticos do carnaval paulistano. Impossível esquecer-se da leveza com que Gabi executava seus passos, e da elegância com que conduzia Vivi.

As baianas traziam sobre a cabeça um tabuleiro com toda a sorte (inevitável o trocadilho) de patuás, confeccionados por presos da Casa de Detenção de São Paulo. O oitavo carro trazia a escultura de uma baiana com onze metros de altura.

O passado e o futuro viriam representados em duas alegorias que tiveram problemas e ficaram na concentração, mas os destaques e composições vieram “no chão”, não comprometendo a leitura do enredo.

Sob o comando de Mestre Neno, a Bateria Furiosa teve um magnífico desempenho naquela manhã, conduzindo a escola para mais um campeonato.

A mensagem principal de Augusto de Oliveira era de que precisamos acreditar em nossos amuletos. Afinal, nossa fé é o que dá vida aos talismãs.

Com 100 pontos, a escola conquistou seu nono título. O regulamento previa o descarte da maior e da menor nota de cada quesito, acarretando na divisão do título com o Vai-Vai. Sem os descartes, o Camisa teria sido campeão sozinho. Jamais se imaginaria que aquele teria sido o último campeonato do camisa no grupo principal.

Se o Talismã deu sorte e foi bem-sucedido em 1993, o mesmo não se pode dizer dos rumos da agremiação nos anos seguintes. Rebaixada em 1996, pela primeira vez em sua história, a escola retornou em 1997, conquistando o título do grupo de acesso, o último de sua gloriosa trajetória. Obteve alguns bons resultados nos anos seguintes, como o vice-campeonato em 2002, mas nunca mais voltou a fazer as arquibancadas do Anhembi tremerem, como por tantos anos tremeram as arquibancadas da Avenida São João e da Avenida Tiradentes.

De 2009 para cá, o Camisa só esteve no grupo especial em 2012. Para os sambistas mais novos, o Camisa é apenas um retrato amarelado na parede da história. Nos últimos anos, o sonho do acesso tem sido obscurecido pelo pesadelo do descenso ao terceiro grupo, no qual já estão outras lendárias senhoras do carnaval paulistano: Nenê de Vila Matilde e Unidos do Peruche.

Ao olhar para nossa situação, penso que a crença nos talismãs não possa ser desprezada. Claro, as atitudes devem ser priorizadas. A resistência não pode ser resumida a uma mera esperança.

A luta contra esse nefasto desgoverno, que destrói nossas instituições, vem ganhando corpo a cada dia, e ganhou as ruas, posto que o perigo de permanecer mais quatro anos com esse ignóbil no comando de nossa nação já supera o medo da dor trazida pela pandemia.

Distanciamento, máscaras e álcool em gel são mais do que necessários para que as inevitáveis aglomerações não se convertam em celeiros de novas cepas.

Mas não custa nada ir às ruas com um pezinho de coelho no bolso e uma medalhinha no pescoço. E deixar uma ferradura atrás da porta de casa, por que não?

Se bem que uns e outros por aí é que devem estar mais do que agarrados a amuletos e talismãs, principalmente depois que ex-cunhadas atrevidas resolvem meter a boca no trombone.

Espero, com essa homenagem ao Camisa Verde e Branco, trazer sorte a todos nessa luta contra a destruição de nosso país e de nossas instituições, e que nossa vitória seja mais duradoura que a da comunidade da Barra Funda.

Basta apenas acreditar. Dar vida a nossos talismãs.

P.S. a coluna de hoje é dedicada a Jaci dos Santos, mais conhecida como Thereza Santos, nascida em 7 de julho de 1930, no Rio de Janeiro. Escritora, atriz, dramaturga e ativista do Movimento Negro por mais de 50 anos, exilou-se na África, nos anos 70, após ser presa por pertencer ao PCB. De volta ao Brasil, integrou o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo e foi assessora de Cultura Afro-Brasileira da Secretaria de Estado da Cultura do Estado de São Paulo entre 1986 e 2002. Candidatou-se a deputada estadual pelo PMDB, mas não foi eleita. Em 1993, recebeu o título de Cidadã Paulistana e, em 2007, foi homenageada pela Unidos do Cabral, que conquistou o 7º lugar no grupo C, a quarta divisão do carnaval carioca. Thereza faleceu em 19 de dezembro de 2012, aos 82 anos.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.