Por Danilo Nunes *
Na década de 1980 e no início da década de 1990, o Brasil vivia um clima de redemocratização e os reflexos dos anos de chumbo e da ditadura militar que assolou o país por vinte e um anos. Havia nos corações do povo brasileiro uma faísca de esperança, como cantou Cazuza e o Barão Vermelho no encerramento de sua apresentação no primeiro Rock in Rio em 1985:
“ ...estamos meu bem por um triz, pro dia nascer feliz, pro mundo inteiro acabar e a gente dormir…”
Havia esperança, havia um sentimento de que algo aconteceria com a entrada de Tancredo Neves. O mesmo Rock’n Rio que fez a multidão entoar unida Pro dia nascer Feliz, trinta e dois anos depois fez o Brasil estremecer com o grito de Fora Temer vindo da Cidade do Rock no Rio de Janeiro e reverberado nos quatro cantos do país.
A partir da Lei de Anistia de 28 de agosto de 1979, sancionada pelo último presidente do regime militar João Figueiredo, o Brasil começa a apontar um novo horizonte através das mobilizações populares que aconteceram ainda em meio à ditadura militar que deixou cada vez mais o país endividado, ampliando as desigualdades sociais.
Na década de 1980, entram em destaque cenas que se tornaram inesquecíveis para a história brasileira. A eleição indireta de um presidente que passou a apoiar as eleições diretas e morreu antes de assumir. O movimento das Diretas Já que saiu às ruas, mobilizando toda uma nação. O plano cruzado e as primeiras eleições diretas com candidatos de todas as forças políticas, a fundação do Partido dos Trabalhadores e a candidatura do operário, metalúrgicos que sofreu todos os preconceitos possíveis na cena política da época. O surgimento de Fernando Collor, eleito Presidente da República e Impeachmado na sequência por grande mobilização popular que saiu às ruas de todo o país e a nova geração de jovens, a geração coca cola, a geração do novo rock brasileiro.
A geração do rock entre 80 e 90 foi uma geração de jovens, em sua maioria oriundos da classe média brasileira, mas que chegaram com perguntas, questionamentos e críticas aos problemas do Brasil, à dívida externa (ampliada no período da ditadura) e aos políticos corruptos que se elegem deputados, senadores, prefeitos, governadores, comprando votos e deixando o povo refém de uma política suja e sem escrúpulos. As cenas armadas e seus personagens estabelecidos com objetivos claros, assim começa esse espetáculo, esse jogo que duraria até os dias de hoje e que, a partir de um processo de impeachment sujo e armado contra a primeira mulher eleita, legitimamente Presidenta do Brasil, levou o povo brasileiro a enfrentar uma das maiores crises sanitárias, políticas e sociais de sua história
O cenário cultural e a cena artística brasileira corriam, paralelamente, transformando em música os acontecimentos da época. Surgiam em cada esquina, em cada cidade, em cada estado, bandas que se encontrariam em harmonias e melodias distorcidas pelas guitarras elétricas que, outrora já havia sido polêmica, gerando confronto entre a própria cena artística que a considerava um elemento fora do contexto, mas que na década de oitenta se tornou instrumento fundamental na identidade cultural do que se produzia e se consumia.
Barão Vermelho, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Titãs, Capital Inicial, Kid Abelha, RPM, Kid Vinil são algumas das bandas que eclodiram no país causando alvoroço na juventude, fazendo renovar o tom de rebeldia e o orgulho de se fazer Rock´n Roll. Quase todas elas traziam em seu repertório críticas ao sistema, à política e aos políticos eleitos ou indicados que ocupavam cargos públicos, fazendo a zona correr solta no congresso, como disse na canção Zé Ninguém a banda Biquini Cavadão.
Duas questões que precisamos levar em conta: Zé Ninguém é uma canção que faz, em seu nome referência aquele (a) cidadão (ã) que é contado (a) como mais um (a) e nem sequer conhecemos a identidade pois está nos números e estatísticas ditas e mostradas por governos e veículos de comunicação. Não é alguém, mas um ninguém. Aqui faço uma referência à obra O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro onde o autor diz:
“Temos aqui duas instâncias. A do ser formado dentro de uma etnia, sempre irredutível por sua própria natureza, que amarga o destino do exilado, do desterrado, forçado a sobreviver no que sabia ser uma comunidade de estranhos, estrangeiro ele a ela, sozinho ele mesmo. A outra, do ser igualmente desgarrado, como cria da terra, que não cabia, porém, nas entidades étnicas aqui constituídas, repelido por elas como um estranho, vivendo à procura de sua identidade”, escreve o antropólogo…”
Essas misturas culturais como o brasilíndio, o mameluco e o afro-brasileiro, perceberam-se em uma terra de ninguém – o termo usado pelo autor é “ninguendade”--, gerando a necessidade de criarem uma identidade, a brasileira. Assim Zé Ninguém já estava presente desde que o Brasil é Brasil.
Uma outra questão é o nome da banda: Biquini Cavadão. O biquíni, roupa de banho ou de praia, considerado ousado, utilizado pela mulher, já foi muito mal visto e interpretado em períodos passados de nossa história, onde a mulher precisava se esconder como se seu próprio corpo fosse um atentado, uma aberração, um pecado, o que acontece até os dias atuais, mesmo com a presença dos movimentos de mulheres organizadas que vêm cada vez mais se empoderando e lutando pela igualdade, ainda distante. A banda não só usou o nome biquíni, como ressaltou o quão cavado é, para desespero dos (as) conservadores (as) de plantão, descendentes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade que deu a força e o incentivo para o golpe militar de 1964 no Brasil.
A banda formada em 1985, tendo como vocalista e um dos compositores o cantor Bruno Gouveia, trouxe para a música brasileira diversas canções de sucesso como Vento Ventania, Tédio, entre outras, também fez o país cantar Zé Ninguém, uma canção que se faz presente e atual até hoje e, tende, pelo o que parece, estará em pauta ainda por muito tempo.
Somos todos Zé Ninguém? O Biquini Cavadão continua com suas atividades sem perder ou deixar de lado o estilo que os levou ao sucesso no país. Bruno é um verdadeiro comunicador dos palcos e traz em sua essência, toda a emoção que o marcou desde a primeira apresentação e ainda hoje nos contagia com o seu jeito direto e de forte expressão, mostrando-nos o quanto se faz necessário termos um Biquini Cavadão nos palcos do Brasil.
Quem foi que disse que amar é sofrer?
Quem foi que disse que Deus é brasileiro?
Que existe ordem e progresso
Enquanto a zona continua no congresso?
Quem foi que disse que a justiça tarda mas não falha?
Que se eu não for um bom menino, Deus vai castigar?
Os dias passam lentos
Aos meses seguem os aumentos
Cada dia eu levo um tiro
Que sai pela culatra
Eu não sou ministro, eu não sou magnata
Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém
Aqui embaixo as leis são diferentes
Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém
Aqui embaixo as leis são diferentes
Quem foi que disse que os homens nascem iguais?
Quem foi que disse que dinheiro não traz felicidade?
Se tudo aqui acaba em samba
No país da corda bamba, querem me derrubar!
Quem foi que disse que os homens não podem chorar?
Quem foi que disse que a vida começa aos quarenta?
A minha acabou faz tempo, agora entendo porque
Cada dia eu levo um tiro
Que sai pela culatra
Eu não sou ministro, eu não sou magnata
Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém
Aqui embaixo as leis são diferentes
Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém
Aqui embaixo as leis são diferentes
A banda trabalha desde novembro de 2020 o seu novo álbum com canções inéditas. Ouvir Bruno cantar e o Biquini Cavadão tocar é, além de viajar no tempo e receber os abraços que nos faltam hoje, mas também entendermos que a cultura, assim como sua mais pura expressão está em constante transformação e (re) significação a todo instante. Biquini Cavadão continua a fazer o povo cantar e se sentir representado. Um povo que por um lado leva em seu coração e sua alma cicatrizes de tempos cortantes e por outro, carrega o olhar puro e ingênuo da esperança de ser feliz, sonhando e acreditando em dias melhores através da música do Biquini Cavadão, como no single lançado em julho de 2021 Nada é Para Sempre, canção do Biquini Cavadão com Maurício Hayena que faz parte do novo álbum Através dos Tempos. E de saideira deste artigo, deixo com vocês, a letra da canção.
Que todo mal encontre uma cura
Que o medo nos dê lugar à luta
E um novo dia
Afaste a escuridão
Que a verdade enfim prevaleça
E a gente nunca mais se esqueça
Que o amor, e não o ódio
Somente ele é capaz de uma revolução
Que o preconceito seja derrotado
Todo choro silenciado
Só pra ouvirmos uma voz do coração
Que o presente, apesar de tudo
Abra os braços para o futuro
E o mundo inteiro se abrace e cante
Uma mesma canção
Nada é pra sempre
Tudo vai ser diferente
Toda tristeza um dia passa
Um novo dia nascerá
Que todo mal encontre uma cura
Que o medo nos dê lugar à luta
E um novo dia
Afaste a escuridão
Que a verdade enfim prevaleça
E a gente nunca mais se esqueça
Que o amor, e não o ódio
Somente ele é capaz de uma revolução
Que o preconceito seja derrotado
Todo choro silenciado
Só pra ouvirmos uma voz do coração
Que o presente, apesar de tudo
Abra os braços para o futuro
E o mundo inteiro se abrace e cante
Uma mesma canção
Nada é pra sempre
Tudo vai ser diferente
Toda tristeza um dia passa
Um novo dia nascerá
Nada é pra sempre (juntos, podemos mudar)
Tudo vai ser diferente (nosso destino, nossa vida)
Toda tristeza um dia passa
Um novo dia nascerá
Para conferir mais sobre o novo trabalho do Biquini Cavadão, acompanhe no próximo domingo um papo com Bruno Gouveia (vocalista da banda) a partir de 20 horas.
Deixo aqui para que todas, todos e todes nós possamos apreciar, o link para single e clipe de Nada é Para Sempre.
Instagram: @danilonunes013
Facebook: @danilonunesbr
*Danilo Nunes é músico, ator, historiador e pesquisador de Cultura Popular Brasileira e Latino-americana.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.