Alguns brasileiros passaram o fim de semana chateados com o Ney Matogrosso e a seleção. Com o Ney, por conta das declarações dele em entrevista ao Globo, no domingo (11) sobre as eleições de 2018. O cantor afirmou que anulou o voto no segundo turno e ainda se perguntou: “qual era a minha opção?”
Já com a seleção a coisa tem outro viés. O seu principal craque, o Neymar, vive aos afagos com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Apoiar um político qualquer é um direito de todos. Bolsonaro, no entanto, passa longe de ser um político qualquer. Mesmo assim, torcer contra o time brasileiro, apesar de ter sido um ato extremamente espontâneo, é um tanto dolorido.
Com o Ney, a história é outra. Tinha apenas 13 anos quando ele apareceu com os Secos & Molhados. Vivia cercado por um mundo homofóbico. Aos mais jovens, é difícil explicar o que significava alguém admitir a hipótese de ser homossexual. Era melhor, diziam os mais velhos, ser qualquer tipo de criminoso. E isso era dito de maneira explícita mesmo pelas pessoas que mais amávamos.
Ney nos abriu o caminho da beleza. Com seus gestos largos, sua beleza infinita e uma voz de tenor que ninguém adivinhava ser masculina ou feminina, nos escancarou as portas de um outro mundo. Nunca, nada nem ninguém por essas plagas tinha nos advertido com tamanha espontaneidade das possibilidades do ser e do estar em paz consigo próprio daquela maneira.
Sua contribuição para as nossas transformações foi tão grande, tão imensa que nada do que ele venha a dizer ou fazer a partir disso pode vir a cortar os efeitos de sua magia. Vote ele em quem quiser e como quiser.
Mesmo com toda a carga militante nas costas e as terríveis possibilidades (que vieram a se confirmar) de um governo Bolsonaro pela frente, a declaração de voto nulo de Ney – que não é nenhuma novidade, ele já havia dito isso – puderam transformar ou refazer o que ele fez por nós, tanto como artista quanto agente transformador.
Ney Matogrosso nunca foi de dizer ou fazer o que se espera que ele diga ou faça. Sempre agiu por conta própria. Ele ser criticado pela esquerda não é novidade alguma, como ele mesmo diz. E eu, filho de comunista, sei bem disso. No espectro político ele sempre esteve de certa forma só. Filho de militar, era odiado pelos militares por ser um degenerado. E pela esquerda também, pelo mesmo motivo.
O voto nulo de Ney, diferente da “escolha muito difícil” do Estadão, vem de outro matiz, outro fundamento. Traz uma profunda e secular preguiça com as coisas comezinhas que transcendem o humano. Posso não concordar em toda a amplidão, mas compreendo e referendo.
Os erros da política talvez sejam mesmo muito mais circunstancias e efêmeros do que os erros humanos, apesar de sempre se misturarem. Ney é daqueles raros que conseguiu navegar por cimas deles.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum