De mentiras à devastação, eis o país da esculhambação!

Na coluna de hoje, Estevan Mazzuia descobre dois antigos desfiles, em meio ao show de mentiras na CPI da Covid-19 e à vergonha da gestão Salles no MMA

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Por Estevan Mazzuia *

Os fatos da última semana, além de me obrigarem a beber (e muito!), transportaram-me no tempo, para encontrar duas pérolas de mais de 40 anos. Na verdade, uma pérola e um salgueiro.

Assim, pela primeira vez nesta coluna, não falarei de reminiscências, mas de grandes descobertas, que devo à CPI da Covid-19 e à Polícia Federal, por escancararem as mentiras de Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello, e os crimes de Ricardo Salles.

O pior chanceler da História do Brasil, aquele que, em pouco mais de dois anos, conseguiu destruir toda a diplomacia brasileira, negou que, durante sua gestão, houvesse um alinhamento automático do Brasil com os EUA e uma política de enfrentamento à China.

Em relação aos EUA, concordo com o ex-ministro. O alinhamento automático era pessoal, com o ex-presidente daquele país. Nunca houve um alinhamento entre estados. Tanto que, com Trump expurgado da Casa Branca, o desgoverno brasileiro se viu mais perdido que cachorro em mudança.

Agora, com relação à China, chega a ser acintosa a declaração daquele que, meses atrás, usou a expressão “comunavírus”, referindo-se à possível origem chinesa do SarsCov-2, e quedou-se inerte quando Eduardo “Bananinha” comparou a pandemia ao acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, acusando a China de orquestrar um plano de dominação mundial pelo comunismo. Para ficar em dois exemplos e não me estender sobre o tema.

Já Pazuello, escorado por um habeas corpus concedido pelo STF, sentiu-se livre para tirar sarro dos senadores e do povo brasileiro. Desnecessário elencar as mentiras. O depoimento todo foi um escárnio. Pessoalmente, acredito que o auge tenha sido a explicação acerca do aplicativo TrateCov, que receitava cloroquina para quem se submetesse a responder um questionário fajuto. Não importavam os sintomas: a recomendação do medicamento era a indicação padrão do tal aplicativo.

Pazuello revelou o “segredo” guardado a sete-chaves pelo Ministério da Saúde, sob seu comando: o aplicativo fora hackeado. Uma “bombástica revelação”. O tal aplicativo, alardeado por veículos de comunicação oficiais do governo, fora supostamente alterado por um hacker e, mesmo sabedor dessa “informação”, o general resolveu torná-la pública somente agora, na CPI.

Em um país sério, um cidadão teria vergonha de proferir tal afirmação. No Brasil, Pazuello apareceu, dias depois, ao lado do presidente, sem máscara, em mais uma aglomeração, e discursando, ofendendo o artigo 45 do Estatuto Militar. Vale lembrar que Pazuello chegou no Senado também sem máscara, e afirmou, perante os senadores, ser favorável ao uso do equipamento de proteção, e ser contrário a aglomerações.

Tantas mentiras levaram-me a questionar se o tema já houvera sido enredo de carnaval. E descobri que, em 1981, a Pérola Negra, tradicional agremiação da Vila Madalena, bairro hypster/boêmio da capital bandeirante, desfilou no grupo especial com o enredo “Quem Não Pode, Pode No 1º de Abril ou A Visita do Reino de Mentira ao País da Verdade”, desenvolvido por Carlos Alberto de Moraes.

Puxado por Murilão, o samba anunciava:

“Pérola Negra vem trazer / este reino fascinante de mentira pra você”.

E concluía, em tom meio profético, meio confiante:

“Ilusão vem invadir a cidade / hoje o povo canta em tom de liberdade”.

Infelizmente, não tenho nenhuma memória desse desfile, e não encontrei qualquer registro sobre ele. Mas a escola conseguiu apenas o nono lugar na classificação geral e acabou rebaixada.

Já os acontecimentos envolvendo o antiministro Ricardo Salles causaram-se outra dificuldade: não faltam enredos sobre Amazônia, ecologia, preservação da natureza. No processo de escolha, todavia, deparei-me com o carnaval da Acadêmicos do Salgueiro, no ano de 1979. O título do enredo pareceu-me deveras apropriado: “O reino encantado da mãe natureza contra o reino do mal”.

Tradicionalíssima agremiação do carnaval carioca, ainda não havia sido enfocada nesta coluna. Decidi, então, que havia chegado sua hora. Embora eu já conhecesse o samba, composto por Bala, Cuíca e Luís Marinheiro, não tinha nenhuma lembrança do desfile, ocorrido em 25 de fevereiro de 1979, quando eu ainda sujava as fraldas.

Infelizmente, o registro audiovisual é muito ruim. Mas os versos puxados por Rico Medeiros, falecido em abril de 2020, com suspeita de Covid-19, são lindos:

Oh! Doce Mãe Natureza / Seus lindos campos / Verdes matas e seu imenso mar.

Oh! que beleza... no infinito / O sol ardente, sempre a brilhar

E o revoar da passarada / Bailando neste céu sem fim.

Na primavera / As lindas flores / Desabrocham no jardim.

Mas surgiu o rei do mal / Com a chegada do progresso / Abalando a estrutura mundial

Poluindo nossa terra / Aniquilando o que Deus abençoou

E quem sofre é a Nação / Nesta batalha / Onde não há vencedor.

E a natureza / Com seu cenário multicor

Refloresce novamente / Com todo seu esplendor”

De autoria de Ivan Jorge e desenvolvido e realizado por Stoessel Cândido e Renato Lage, o enredo já convocava a reflexão para a necessidade de uma utilização sustentável dos recursos naturais e exaltava a luta da ciência pela preservação desses recursos.

Foi dividido em três partes: “O reino encantado da mãe natureza”, com a fauna e flora em perfeita harmonia, “A Invasão do Mal”, retratando o desequilíbrio e a destruição promovidos pelo ser humano, e “A Guerra”, o embate final, em que a natureza resiste às hordas destruidoras. 

Quinta escola a desfilar, entre apenas oito, naquele ano, a vermelho-e-branco tijucana teve problemas e conseguiu apenas um sexto lugar. A bateria, sob o comando de Mestre Loro, deixou o recuo precocemente e a metade final dos componentes acabou perdendo a sustentação dos 300 ritmistas, ocasionando o atravessamento do samba.

Tal qual o Salgueiro de 1979, o atual desgoverno também vem atravessando o samba, e não é de hoje.

Não que vivêssemos em um “reino encantado” antes de 1º de janeiro de 2019, muito pelo contrário. Mas jamais imaginamos que um senhor como Ricardo Salles pudesse ocupar o cargo que ocupa, defendendo abertamente a extração ilegal de madeira, a extinção de normas ambientais reguladoras, destruindo o IBAMA e o ICMBio. “Passando a boiada”, como ele mesmo disse.

Ao tomar conhecimento da maior apreensão de madeira ilegal da História do país, Salles parou o que estava fazendo e correu ao Pará, para garantir ao delegado responsável que não havia qualquer ilegalidade, antes mesmo de tomar conhecimento dos fatos e checar a (falta de) documentação. O delegado acabou demitido da superintendência da Polícia Federal.

A impressão que tenho é de que JB, o devastador, acredita viver em uma bolha, com seus torcedores. A despeito de usar como poucos o poder das redes sociais, parece ignorar não ser possível agir como os soviéticos em 1986, que esconderam quanto puderam o desastre de Chernobyl. Ele diz para o mundo que está imprimindo esforços para acabar com o desmatamento na Amazônia e, no minuto seguinte, sem nenhum pudor, reduz os investimentos em prol do controle e redução da devastação.

Em seus devaneios, deve acreditar que o que ele faz por aqui não chega ao conhecimento dos demais líderes mundiais. Seu ódio cego à imprensa parece ter feito com que ele ignore a existência de correspondentes internacionais. Salles parece sofrer do mesmo bloqueio cognitivo. A embaixada dos Estados Unidos no Brasil detectou um esquema de facilitação ao contrabando de produtos florestais. Em vez de agradecer à ajuda prestada pela representação diplomática do país que Araújo e JB exaltaram por dois anos, Salles correu para a superintendência da Polícia Federal no DF, com um capanga armado, para tirar satisfações de um inquérito que corre sob sigilo, por determinação de Alexandre de Moraes, ministro do STF. Talvez Salles acredite que esteja estrelando um filme de Sérgio Leone.

Que nada. O Brasil de JB é uma pornochanchada sem graça, na qual JB imita Mussolini, passeando de moto pelo aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, numa comemoração às mais de 450 mil vidas de brasileiros ceifadas pela pandemia. Uma ode à esculhambação.

Aliás, só eu achei sintomático que ele tenha promovido aglomeração no Maranhão, logo após ser detectada a variante indiana do novo coronavírus naquele estado?

Fica difícil rebater quem defende que haja um projeto de extermínio em prol de uma utópica imunização de rebanho, que só ocorrerá pela vacinação em massa. Vacinação que, a permanecerem as circunstâncias atuais, poderá ser concluída por volta de 2024.

“E quem sofre é a nação, nessa batalha onde não há vencedor”, como já disseram Bala, Cuíca e Luís Marinheiro.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.