Jacarezinho: uma noite (não tão) feliz para a comunidade que hoje é dor e tristeza

Na coluna de hoje, Tuta do Uirapuru relembra o último desfile da Unidos do Jacarezinho no Grupo Especial, lamentando o massacre da última quinta-feira

Foto: Redes sociais
Escrito en CULTURA el

Por Estevan Mazzuia *

6 de maio de 2021: o mundo ficou estarrecido com o Brasil, novamente. Dessa vez, não por causa de nosso chefe de Estado, embora ele possa estar envolvido no desastre que foi o massacre no Jacarezinho.

Sob a alegação de proteger os menores aliciados pelo crime organizado, o Estado condenou à pena de morte 28 pessoas, incluindo um policial. Sim, aqueles menores que não recebem nenhum apoio do Estado, que têm sua existência completamente ignorada, que para muitos desses que hoje ditam os rumos da nação, nem deveriam ter nascido, se tornaram o último biscoito do pacote para o Rio de Janeiro.

Há quem diga que os reais interesses por trás da desastrosa operação seriam abrir as portas para que a milícia, que já domina mais da metade do território carioca, possa ocupar uma região que sempre foi dominada pelo narcotráfico. Não à toa, JB, o miliciano, parabenizou a operação. Essa teoria poderia ser reforçada pelo fato de que operações como essas jamais ocorrem em áreas ocupadas por milicianos. Mas como eu não sou dado a teorias da conspiração, vou acreditar que o Estado queria mesmo proteger as criancinhas.

As autoridades policiais venderam a operação mais letal da história do Rio de Janeiro como um sucesso. 21 mandados de prisão, apenas três cumpridos. Sete, se contarmos os quatro que receberam sentença de morte ali mesmo. 15 dos procurados, ou 71%, fugiram. Outras 25 pessoas morreram, incluindo o policial e duas pessoas sem qualquer passagem pela polícia, fora os feridos. Dentre os 28 mortos, menos da metade (12) tinha anotações criminais relacionadas ao tráfico de drogas.

Pergunto-me qual seria o conceito de fiasco para a polícia do Rio de Janeiro.

Isso tudo em meio à vigência de decisão do STF na ADPF 635, restringindo operações desse tipo durante a pandemia. E aí que JB entra novamente. A operação afronta a autoridade do Supremo, que está pedindo de joelhos, e faz tempo, para ser desrespeitado. JB não tem partido, não tem base no Congresso, nem apoio das Forças Armadas, mas ainda alimenta devaneios de se tornar uma espécie de Idi Amin Dada tupiniquim. E parece ter apoio das polícias para isso.

É fato notório que o crime organizado comanda não apenas o Jacarezinho, como outras tantas comunidades cariocas. Assim como somente um desvairado pode acreditar que todas as pessoas que moram no Jacarezinho pertençam ao crime organizado.

Sim, onde o senhor acha que mora o porteiro de seu prédio? O rapaz que engraxa seu sapato? Diga lá, minha senhora, onde acreditas que resida aquela caixa simpática do supermercado? A moça que serve o cafezinho no seu escritório (ou que servia, até que esse vírus insano desse as caras), onde mora? Os rapazes que coletam o lixo que você deposita na porta de sua casa?

Não, senhores e senhoras, por mais que seja duro acreditar, essas pessoas não moram no Leblon, em Higienópolis ou na Savassi. Elas se amontoam onde couberem, em meio àqueles barracos que lhes causam náuseas. Ali eles curtem suas raras folgas, ali eles aproveitam seus minutos de lazer, ali eles cultivam o sorriso que irão lhe oferecer durante a semana.

Eu arriscaria dizer que a proporção de criminosos no Jacarezinho deve estar muito próxima da proporção encontrada nas áreas nobres. Lógico, para isso, teríamos que considerar os crimes contra a Recita Federal, a corrupção, crimes de natureza sexual, feminicídio, entre outros e, claro, o narcotráfico. Sim, porque nas comunidades se escondem os soldados. Os generais, em sua maioria, estão entre nós, mesmo. Dão entrevista na TV, aparecem nas colunas sociais.

Brasileiro não tem problema com criminosos. O problema sempre foi com os pobres e com os negros. Não precisa fazer uma pesquisa muito profunda para se constatar isso. Basta levantar quantos vereadores, deputados, senadores, governadores, prefeitos e presidente têm ficha criminal. E basta ver quantos são negros e pobres. Bandido “bom”, é eleito. Morto, é o bandido preto e pobre. E nem precisa ser bandido. Ainda que ser preto e pobre seja crime para muita gente.

O brasileiro não aceitou, até hoje, o fim da escravidão. 133 anos depois. E olha que foi uma leizinha bem furreca, assinada com muita má vontade, que do dia pra noite tirou negros da senzala e jogou no meio da rua. E nem com a roupa do corpo. “Livres”, enfim.

Como diz a letra de um samba maravilhoso, de Hélio Turco, Jurandir e Alvinho: “livres do açoite da senzala, presos na miséria da favela”.

Não por acaso, a origem das primeiras comunidades se dá logo após 1888. Extraídos da África, e despejados nos quintais de Pindorama, os negros iniciaram a ocupação do Morro da Providência, na então capital federal. Em pouco tempo, o local se assemelhava aos acampamentos dos soldados republicanos em Canudos, em um morro que tinha uma abundante plantinha, chamada favela. Do Morro da Favela em Canudos, para as favelas por todos os lados, foi um piscar de olhos.

Como tantas comunidades espalhadas pelo Rio de Janeiro, a do Jacarezinho possui uma escola de samba: a Unidos do Jacarezinho, nascida da fusão de três entidades carnavalescas, em 1966. Afilhada da Mangueira, tem o verde, o rosa e o branco como cores oficiais, e um jacaré como símbolo. Um jacaré pequeno, a bem da verdade. Um “jacarezinho”, como não poderia deixar de ser.

Sua primeira aparição no grupo principal foi em 1970, sem sucesso, e rebaixada; em 1973, nova participação, e novo rebaixamento. Sua terceira aparição entre as grandes foi em 1987, homenageando Lupicínio Rodrigues, com o terceiro rebaixamento. Por fim, em 1989, a aguerrida agremiação fez sua derradeira aparição entre as grandes escolas da capital fluminense.

Com o enredo "Mitologia, Astrologia, Horóscopo, uma bênção.", desenvolvido por Lucas Pinto, a escola abriu a segunda noite de desfiles daquele que, para mim, foi o maior da era da Sapucaí. Aos menos três desfiles foram antológicos naquele ano: Imperatriz Leopoldinense, Beija-flor e  União da Ilha, não por acaso as três primeiras colocadas. Vila Isabel e Salgueiro vieram um degrau abaixo, mas com carnaval para serem campeãs em anos “normais”. Fora outros tantos desfiles deliciosos, em um total de 18 escolas.

Narrando uma hipotética viagem de Zeus pelas civilizações, em diferentes períodos da História, até chegar ao carnaval carioca, o enredo reunia mitologias e astrologia, em uma confusão absolutamente autorizada no carnaval, permitindo ao carnavalesco trabalhar com simbologias de estéticas altamente carnavalizáveis, como Babilônia, Egito, Grécia, China, África e Roma. E o zodíaco, claro.

Escola de pequenos recursos, não tardou a sofrer com os problemas: a indumentária dos integrantes da comissão de frente não ficou pronta a tempo, e representantes da velha guarda tiveram que improvisar na função. As fantasias chegaram no meio do desfile, e os bailarinos foram posicionados atrás da linha de frente improvisada, que já havia sido avaliada pelo primeiro julgador do quesito.

Ainda na concentração, uma alegoria teve um princípio de incêndio, outra quebrou, causando problemas de enredo, decorrentes da ausência de elementos fundamentais, e inversão de alas, que passavam à frente das alegorias, para não quebrar o fluxo da escola, mas comprometendo o conjunto da obra.

Somando-se a esses problemas, alegorias pequenas e fantasias simples anunciavam o que se confirmaria na apuração: 159 pontos, e 18º e último lugar na tábua de classificação, o quarto rebaixamento da escola em quatro participações no grupo especial.

Mas o mais importante é a alegria e a raça daqueles componentes, que deixaram muita saudade no grupo especial. Uma escola de samba verdadeiramente de raiz. Se faltou luxo, sobraram garra e samba no pé. O samba, aliás, puxado pelo magistral Carlinhos de Pilares, era poesia na veia:

“Me fiz de sonhos e vaguei / Pelas estrelas

E ao perto tê-las / Como estrela me senti

(...)

Hoje o sol é o nosso astro-rei / A opulência da mais alta majestade

Um cicerone da lua / Guiando os astros / Para sambar na cidade”

Composto por Jorge PI, Serginho da Banda, Macambira, Batista do Jacarezinho, Lúcio Bacalhau e o lendário Barbeirinho do Jacarezinho, entretanto, era um tanto longo, mesmo para seu tempo, e dotado de vocábulos pouco comezinhos. Nada que reduza o valor da obra, mas samba-enredo, para funcionar bem, tem que cair na boca do povo. Não rolou. Mas é lindo pacas!

 Diante da tragédia da última quinta-feira, não pude evitar o questionamento: quantos dos 27 moradores condenados à morte sem direito a defesa eram filhos ou netos de foliões que representaram a comunidade na Sapucaí, naquela noite de 6 de fevereiro de 1989?

“Ah, para com isso. Ali eram todos bandidos”, como afirmou nosso vice-presidente.

Digamos que ele esteja certo.

Digamos que, como acredita JB, o genocida, a morte de alguns inocentes deva ser o preço a ser pago para que possamos viver mais tranquilos.

Pergunto: alguém que é capaz de defender a chacina promovida pelo Estado, realmente acredita que o crime organizado vai acabar assim? Será que uma bomba que exterminasse o Jacarezinho, matando todos os criminosos, e a grande maioria de trabalhadores, idosos, mulheres e crianças, seria capaz de resolver o problema?

Com o Estado mantendo sua política de investimento zero em saúde, estrutura, educação, saneamento básico, em quanto tempo um novo Jacarezinho se formaria ali no mesmo local?

“Ah, aí a gente vai lá e joga outra bomba”.

“Tá ok”. Sigamos, então, o caminho “mais fácil”.

Só não vamos nos esquecer que, entre uma bomba e outra, a fatura da desigualdade social vai continuar chegando na porta de cada um de nós. E ela não costuma cobrar barato não.

Quem semeia a tristeza, não pode esperar que floresça a felicidade.

Hoje, no terceiro grupo, o Jacarezinho segue mostrando, há 55 carnavais, que sabe fazer do limão uma limonada, melhor do que uns e outros por aí, enchendo de alegria os corações de quem é apaixonado por carnaval.

Por tudo isso, a coluna de hoje é dedicada à toda a comunidade do Jacarezinho, esperando que barbaridades como a de quinta-feira passada deixem logo de ser lugar comum no cotidiano de um país que distribui desigualmente as oportunidades, para depois matar e prender aqueles que julgou indignos de receberem o amparo estatal e as necessidades básicas garantidas pela lei e pela Constituição Federal.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.