Por Estevan Mazzuia *
27 de abril de 1994: há exatos 27 anos a África do Sul abraçava a democracia e elegia Nelson Mandela o primeiro presidente negro daquela nação, colocando um ponto final ao colonialismo e ao regime de segregação racial iniciado em 1948. Em 17 de março de 1992 a população já havia referendado o fim do “Apartheid”, mas somente com as eleições ele foi oficialmente extinto. Por isso, a África do Sul comemora hoje seu Dia da Liberdade.
“Liberdade, pelo amor de Deus / Liberdade a este céu azul
É minha terra, orgulho meu / Porto da Pedra canta a África do Sul”
A Unidos de Porto da Pedra, escola de São Gonçalo/RJ (vizinha de Niterói, do outro lado da Baía de Guanabara), fundada em 8 de março de 1978, mas que somente em 1994 passou a desfilar na capital fluminense, levou pra Sapucaí um pouco da história de libertação da África do Sul e de seu “leão enjaulado”, Nelson Mandela. Foi a primeira escola a desfilar na segunda-feira de carnaval, abrindo a segunda noite de desfiles do grupo especial do carnaval carioca.
Com 3.500 componentes divididos em 36 alas e oito alegorias, a escola promoveu o encontro de seu símbolo, o “tigre”, com o “leão” africano, no enredo “Preto e Branco a Cores”, desenvolvido por Milton Cunha. O samba foi composto por David Souza, Fábio Costa, Francisco, William, e Wagner e puxado por Luizinho Andanças. Sua letra, de poesia impactante, permeará este artigo.
“Destino a minha vida / Minha luta pela liberdade
A nove filhas de um só coração / Ao Sul do berço da humanidade”
História, cultura e riquezas da África do Sul, a luta de Mandela contra o regime de segregação, que lhe colocou na prisão entre 1962 e 1990, e as belezas sul-africanas estavam presentes no desfile, realizado sob as expectativas da Copa do Mundo de futebol de 2010, a primeira em solo africano, no país mais austral do continente onde surgiu o Homem. A letra faz referência às nove etnias que formam a população sul-africana nativa.
Coreografada por Roberto Lima (responsável pelo mesmo quesito no desfile da Vila Isabel, campeã do ano anterior), a comissão de frente trazia bailarinos com trajes típicos e máscaras de látex, representando Mandela e toda a nobreza do continente africano. Uma enorme bandeira da África do Sul era desfraldada em determinado momento da coreografia. Em seguida, uma ala coreografada, envolvia o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira, todos à frente do abre-alas, que trazia o tigre símbolo da agremiação em preto-e-branco. Milton Cunha usou o preto e branco para simbolizar o “Apartheid”, diversificando a paleta de cores a partir da metade do desfile, em referência ao progressivo processo de libertação.
Foram 250 baianas formando uma imensa ala à frente da segunda alegoria. Com detalhes em vermelho, as mães-do-samba estavam divididas em três setores, de acordo com as cores predominantes das fantasias: o branco da paz, o cinza da intolerância e o preto do luto, retratando a progressão, da tranquilidade que precedeu a intolerância da colonização, às trevas da segregação.
“O Anjo Invasor me deu a cor, mas cor não tenho
Eu tenho raça e a cada farsa, a cada horror
O meu empenho, meu braço, meu valor”
Uma grande escultura, com uma espada na mão, simbolizava o “anjo colonizador racista”, sobre a segunda alegoria. Menção a portugueses, holandeses e, claro, ingleses, que se sucederam no domínio do território. Logo abaixo, jazia uma escultura em referência a Hector Pierterson, garoto de 12 anos morto durante o Levante de Soweto, em 16 de junho de 1976. A imagem de seu corpo sobre os braços de um colega se tornou o triste retrato do massacre que ceifou, ao menos, 100 vidas (há fontes que mencionam 700 imolados).
A alegoria fazia referência ainda ao quadro “O Grito”, de Edvard Münch, representando os muitos brancos que, não intolerantes, se surpreendiam com o terror do “Apartheid”.
“Se ergueu contra o monstro da cobiça / Caveirão da injustiça, filho da segregação
Liberto permanece o pensamento / Ele foi meu alento / Quando o corpo foi prisão”
O veículo policial “Melo Yelom” era a imagem da repressão que esmagava a resistência e revoltava o mundo. Estava representado na terceira alegoria, ladeado por esculturas em homenagem à arte de Steve Biko, ativista morto em 1977, após ser preso e torturado.
“O nosso herói Mandela é / Senhor da fé, clamou o povo
E o Tigre encontra no Leão / A maior inspiração de um mundo novo”
Mandela já aparece livre sobre a quarta alegoria, representando a esperança de novos tempos. Eleito presidente, governou focado na reunificação da nação e não em vingança. Seu vice-presidente era o branco Frederik Willem de Klerk, que o precedera no comando do país, já nos estertores do regime de segregação.
Em 1993, Mandela foi agraciado com o prêmio Nobel da Paz. Nove anos depois de o bispo Desmond Tutu, outra figura central do movimento de resistência, receber o mesmo prêmio.
“Do gueto, um palco de glória / Corre em meu sangue a história
Num mundo misturado / Matizado com as cores deste chão”
Seguiram-se coloridas alas, representando as nove etnias sul-africanas, as tais “nove filhas de um só coração”, cantadas no samba.
“Um canto a ser louvado, ser humano ante a fome e a privação
Museu da Favela Vermelha / Minha alma se espelha na face do irmão”
Toda em acrílico, e inspirada no Epcot Center, a quinta alegoria representava a moderna África do Sul, trazendo em seu centro uma escultura da taça da Copa do Mundo da FIFA.
Já a alegoria seguinte fazia menção ao “The Red Location Museum”, um tributo pela luta contra o “Apartheid”, inaugurado em 2006, em meio a barracos vermelhos de uma verdadeira favela sul-africana, na periferia de Porto Elizabeth, a quinta maior cidade do país, no litoral, às margens da Mandela Bay. Um enorme coração referenciava o primeiro transplante do órgão, realizado em 1967, pelo médico sul-africano Christiaan Barnard.
“É hoje, vou cantar / Minha gente é o lugar que eu sempre quis
Na Avenida, meu irmão, vou abraçar /Viver a igualdade e ser feliz”
A velha-guarda da escola vinha sobre a alegoria que representava, no enredo, o Dia da Reconciliação, uma festa de confraternização entre todas as raças do planeta. Abdias do Nascimento, Zezé Motta e Lindiwe Zulu, então embaixadora da África do Sul no Brasil, estavam na festa.
As últimas alas representavam a fauna sul-africana e, a última alegoria, as riquezas naturais e minerais do país. Uma grande fênix dourada simbolizava o ressurgimento da África do Sul, das cinzas do “Apartheid”.
Apesar de seu esplêndido lirismo, o samba possuía uma melodia em tom menor que pode funcionar muito bem em audições intimistas, mas nem sempre obtém o mesmo resultado na grande ópera popular do carnaval. Apática e fria, a escola não empolgou. Comandada pelo experiente Mestre Loro (irmão de Almir Guineto e mestre de bateria do Salgueiro entre 1972 e 2003), a bateria deixou para trás um buraco, ao entrar no recuo, comprometendo harmonia, evolução e conjunto.
Apesar de todo o seu talento, Milton Cunha não conseguiu imprimir nas alegorias e fantasias a força do enredo e de sua capacidade artística. Falta de recursos, talvez. Eu estava nas arquibancadas, cantando desesperadamente um de meus sambas preferidos daquele ano, mas decepcionado com a plástica da escola. Temi pelo pior: um rebaixamento, que acabou não ocorrendo, por sorte.
Com 391,2 pontos, a escola classificou-se em décimo lugar e, à frente de três coirmãs, livrou-se da degola.
Impossível deixar de lembrar a posição de liderança que o Brasil ocupava no cenário mundial em 2007, integrando o recém fundado BRICS, ao lado de Rússia, Índia e China, além da própria África do Sul. Tal como os sul-africanos, anos antes, tínhamos na presidência um homem que combateu a intolerância e foi preso por lutar pela liberdade, durante nosso período de trevas, a Ditadura Militar.
Promovendo um governo de unificação, tirou o Brasil do mapa da fome mundial e reduziu o desemprego a patamares de nações de primeiro mundo. Aqueceu o setor de construção civil, levando infraestrutura aos mais distantes rincões e ergueu universidades como “nunca antes na história deste país”.
Levou médicos aos desvalidos, fortaleceu a Polícia e o Ministério Público federais, garantindo total independência ao funcionamento das instituições.
Acabou traído pelo pêndulo da História, pelo analfabetismo político e pela falta de memória de uma classe média, que foi convencida pela elite econômica de que a culpa de todos os males sempre será dos miseráveis.
Preso novamente, após um processo que se revelou uma enorme farsa, teve seus direitos políticos cassados, como parte de um imenso acordo, “com o Supremo, com tudo”, que nos condenou a voltar ao mapa da fome, a níveis pornográficos de desemprego e à total falta de perspectiva de futuro, resultando numa debandada de investimentos sem precedentes em Pindorama.
Equilibrando-se sobre quase 400 mil cadáveres, que diariamente se somam a outros tantos milhares, frutos da ignorância, do descaso, do ódio e da intolerância que levou ao poder um cidadão absolutamente abjeto, resta-nos resistir.
Não há mal que sempre dure. Tal qual a África do Sul, a Fênix verde e amarela há de surgir em meio aos escombros do que restar de nosso país quando esse pesadelo acabar.
Liberto permanecerá nosso pensamento.
E será sempre nosso alento, ainda que o corpo seja prisão.
P.S.: A coluna de hoje é dedicada à memória de Eneida de Moraes, falecida há exatos 50 anos. Jornalista, escritora, militante política e pesquisadora brasileira, escreveu “História do Carnaval Carioca” (1958), a primeira obra acadêmica relevante sobre o tema.
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.