A Praça Mauá, em Santos, estava lotada de jovens naquele final de tarde de maio de 2009. Um desavisado que olhasse em volta iria imaginar que dali a instantes iria subir ao palco da Virada Cultural Paulista alguma banda de rock. Garotos cabeludos, meninas de vestido solto e sandálias de couro, enfim, muita energia e alegria irradiavam do local e não davam a menor pista do que iria acontecer.
Ao contrário de todos os prognósticos, sobe ao palco amparada uma senhora de quase 90 anos, de sorriso largo, enquanto a garotada frenética a saudava feito uma deusa. Aos primeiros acordes do primeiro samba ate o final do show, todos sem exceção cantavam em uníssono com ela cada uma de suas composições.
Nesta terça-feira, 13 de abril de 2021, pouco mais de dez anos após aquele dia, Dona Ivone Lara teria completado cem anos se não tivesse partido três dias depois de completar 96 anos, em 16 de abril de 2018.
Várias comemorações, comentários, postagens e homenagens circularam por todos os meios de comunicação disponíveis para lembrar a efeméride. A razão é uma só e muito simples. Dona Ivone Lara conseguiu, com seu talento irresistível de compositora e cantora, um lugar na eternidade.
O público eternamente cativo e renovado que ela amontoou em torno de seus shows e seus sambas sabia disso mais do que ninguém.
Sua trajetória desbravadora e inovadora, no entanto, não se deu só na música. Como enfermeira, ela participou ativamente da construção de uma nova mentalidade no tratamento da saúde mental. Especializada em terapia ocupacional, Ivone Lara trabalhou no Serviço Nacional de Doenças Mentais do Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro com a doutora Nise da Silveira, médica que revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil.
A coisa não parou por aí. Ela foi também uma espécie de precursora da musicoterapia no país, ao criar uma oficina de música para socialização dos pacientes. Sua atuação rendeu uma personagem no filme “Nise – O Coração da Loucura”, de Roberto Berliner, interpretada pela atriz Roberta Rodrigues. Nise da Silveira foi interpretada por Glória Pires.
Ela trabalhou por 37 anos no Engenho de Dentro até, finalmente, aos 57 anos, passar a se dedicar totalmente à música. Com a sua canção foi portadora de uma beleza rara, daquelas que feito um cometa, só nos visita vez ou outra. Entre as muitas façanhas de Dona Ivone, uma das maiores foi ser a primeira mulher a fazer parte de uma ala de compositores de uma escola de samba, a Império Serrano.
Daí em diante a história é conhecida por todos. Seus sambas falam por si. Composições como “Sorriso Negro”, “Sonho Meu”, “Alguém me Avisou”, “Candeeiro da Vovó”, “Minha Verdade”, entre outras, encantaram o Brasil e o mundo. Foi gravada por vários interpretes e se transformou em uma das nossas compositoras mais prestigiadas.
Nestes seus cem anos, voltamos à praça, ao seu samba eterno, à eterna juventude de Dona Ivone Lara.