Os santistas contam com uma sombra a mais na tenebrosa história da ditadura militar brasileira. Ancorou no belo balneário do litoral paulista, no ano de 1964, o navio Raul Soares. Até aqui, nada tão incomum para este que é – como sempre estudamos na escola – o maior porto de mar da América Latina.
O fato sobre o fato é que o tal navio, que ficou ancorado nos primeiros meses da ditadura no Estuário, em frente ao Porto de Santos, foi uma saída rápida que os militares brasileiros encontraram para prender seus desafetos. E eles não faltavam na região da Baixada Santista, conhecida na época como a Baixada Vermelha ou a Moscou Brasileira.
No navio, um monumento à vergonha encravado no mar da nossa infância e vida, ficaram presos diversos perseguidos políticos e líderes sindicais, entre eles, o sergipano Iradil Melo. A sua heroica história foi contada pela própria filha, a jornalista Lídia Maria de Melo, no comovente livro “Raul Soares, um Navio Tatuado em Nós”.
Eu e Lídia estudamos na mesma época, entre o fim dos anos 70 e o início dos anos 80, na Facos, a saudosa Faculdade de Comunicação de Santos. Quase 40 anos depois, mais uma vez e infelizmente às voltas com histórias políticas tenebrosas, me deparo com um lindo poema seu chamado “Apenas um Navio”.
O texto me comoveu por várias razões. A principal delas é que o poema aborda a visão do navio e da prisão do pai pelos olhos da criança e, sobretudo, da “angustia disfarçada” de dona Mercedes Gomes de Sá, sua mãe que, apesar de tudo, precisava se manter de pé para criar os filhos.
Descubro, emocionado, que o poema foi escrito em maio de 82, mais ou menos na mesma época em que estudávamos juntos. As palavras de Lídia começaram a cantar em mim involuntariamente, eu também filho de pai de esquerda. Não imaginava se ela gostaria disso ou não, transformar algo tão pessoal seu em uma canção. Levei algumas semanas para tomar coragem e mandar a ela.
Lídia me respondeu emocionada. Não tinha me dado conta da coincidência, mas sua mãe havia partido apenas dois meses antes. Me fez apenas um cândido e óbvio pedido. Da sua assinatura. Que não esquecesse jamais que aquela era sua obra, a história da sua vida.
O poema segue abaixo. Já a canção, qualquer dia mostro a vocês.
Apenas Um Navio
(Lídia Maria de Melo - maio de 1982)
No ano de meia quatro,
no meio do estuário,
em frente ao Porto de Santos,
o porto de minha infância,
das barcas e das catraias,
dos navios e rebocadores,
dos trens e dos armazéns,
onde os botos,
às cinco e meia da tarde,
viravam cambalhotas
enquanto as gaivotas
fisgavam peixes no mar,
avistava-se um navio
velho, preto,
ancorado
próximo à Ilha Barnabé,
que os menos informados
confundiam com um navio comum.
Mas eu e muitas crianças,
que ansiavam
para verem os pais
(confinados),
sabíamos que ele era bem mais
que um navio qualquer
e o culpávamos
pela ausência paterna
nos almoços de domingo,
pela angústia disfarçada nos olhos de nossas mães,
pela melancolia que abraçava
todas as nossas brincadeiras,
pela vontade de chorar
sem saber bem o porquê.
Nós já sentíamos tudo
e éramos tão crianças!
Só o que não entendíamos
é que o Raul Soares
era apenas um navio
e não tinha culpa de nada.
Não tinha culpa de ter virado
Instrumento repressivo
no ano de meia quatro.