O cinema voltou com tudo. Evidente que ele jamais partiu de verdade, mas logo hoje, 28 de dezembro, aniversário de seus 126 anos, vale lembrar que a sétima arte já passava por uma profunda crise antes mesmo da pandemia. Salas falindo e fechando, principalmente as de arte (saiba mais neste podcast clicando aqui). Porém, mesmo blockbusters de grande orçamento e nomes consagrados estavam sofrendo com a concorrência dos streamings que vieram para ficar.
Este próprio crítico que vos escreve, por exemplo, a despeito do arrefecimento dos protocolos de distanciamento social com as vacinas de reforço, ainda vem caçando salas vazias de cinema pra começar a reacostumar a aglomerações, enquanto não agüenta ainda estar no mesmo ambiente de quem tira máscara pra comer pipoca – priorizando exemplares que já estejam saindo de cartaz e com poucas pessoas ou mesmo nenhuma nas sessões menos procuradas.
E eis que os grandes filmes, outrora adiados pelo fechamento das salas do circuito comercial no pico da crise mundial, estão todos chegando de uma só vez, como a estréia de exemplares muito aguardados do porte de “Matrix Resurrections” de Lana Wachowski (em breve também na HBO Max brasileira, 30 dias após o lançamento nos cinemas) e “Não Olhe Para Cima” de Adam McKay (que chegou quase simultaneamente na Netflix).
A surpresa destes lançamentos foi ver as salas ainda completamente vazias, mesmo em suas estréias. Até o blockbuster “Matrix 4” estava quase completamente abandonado na sua primeiríssima sessão, enquanto “Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa” lotava todas as sessões e parecia significar a tão aguardada ressurreição dos cinemas. Porém, a ótima notícia é que, aparentemente, é melhor estar só do que mal acompanhado, pois o retorno de Neo, Trinity e outros excelentes personagens criados desde a primeira incursão foi uma excelente experiência e facilmente nos ajuda a esquecer o gostinho amargo de decepção das seqüências na trilogia original.
Uma meta-sequência que faz tipo a trilogia "Antes do Amanhecer" de Richard Linklater e revisita as personagens, aqui como ferramentas de uma crônica da nossa própria vida tecnológica (inclusive havendo toda uma contemporaneidade influenciada pelo primeiro filme “Matrix” de 1999, quando as irmãs Wachowski ainda assinavam por seus nomes biológicos, antes de transicionarem).
Há uma onda de franquias revisitadas atualmente que parecem ter deixado o nível exato de saudade para voltar apenas depois de algumas décadas, como foi com “Jurassic World” de Colin Trevorrow (2015) e “Blade Runner 2049” de Denis Villeneuve (2017), cujo timing atualizou as respectivas estéticas para as novas gerações com questionamentos e reflexões relevantes aos significantes que lhes deram vida. Não pareceram apenas querer sugar da fama prévia, e sim acrescentar uma camada autoral própria a mais nas interpretações pré-existentes.
Além disso, esta foi uma retomada na hora certa para “Matrix”, resgatando de volta a simbologia outrora capturada por incels, já que todas as significações da pílula azul e pílula vermelha haviam sido desvirtuadas por seguidores de governos extremamente conservadores da atualidade predominantemente de homens brancos, cis, héteros e de elite – quando as irmãs Wachowski haviam tido a intenção de criar uma metáfora sobre suas próprias transições de identidade num sentido contra-hegemônico para mulheres trans.
Ou seja, o despertar inicial de um universo virtual que podia recriar as coisas a bel prazer para fora de uma realidade manipulada, que não nos enxergava como gente, e sim como baterias, era um processo democratizador e emancipatório na intenção nobre das irmãs. Há, inclusive, debates e discussões no novo filme sobre isso para tentar renovar as metáforas que já adivinham de filósofos como Zygmunt Bauman e René Descartes.
Isso tudo além de ótimas novas personagens como “Bugs Bunny” (Pernalonga em inglês e mais uma vez a metáfora com o coelho que entra no buraco de “Alice no País das Maravilhas”), que é reflexo de nós mesmos, os fãs, reencontrando os ídolos míticos que estão cansados e precisam dos olhos frescos pra se renovar. Ou a invenção do “enxame”, que é a melhor representação atual do gado das redes sociais que segue tudo o que o efeito arrastão manda seguir. Tudo funciona como bela homenagem e não desmerece a intenção original das personagens.
Mesmo não tendo sido dirigido desta vez pelas duas irmãs, o que Lana Wachowski faz é tratar o material original como discos de vinil vintage, e coloca todos na vitrola de modo a fazer um remix ao invés de propriamente um reboot. Um remix que funciona. Se Laurence Fishburne como Morpheus era jazz, Yahya Abdul Mateen é hip hop (lembrando que o Morpheus de Fishburne continua preservado e homenageado lá dentro, e a “nova” persona interpretada por Yahya é outra coisa).
Se o Agente Smith de Hugo Weaving era uma orquestra inteira, Jonathan Groff é só um sample pra caber na história que não estava destinada a ele, pois se deixasse a personagem original ser quem ela já foi, ela não só seqüestraria a história inteira como faria deste exemplar o mesmo filme que já foi contado antes. E é aí que acredito entrar a metáfora da transgeneridade que Lana inseriu: da mudança de corpos como próteses. Tudo ali pode ser reimaginado livremente numa nova identidade a partir da autofabulação. A própria ressurreição de Neo e Trinity como o subtítulo já diz é a junção de duas metades numa mistura não binária, pois “a força” aqui, diferente de “Star Wars”, só pode ser alcançada com a fusão do amor.
Por isso mesmo, “Matrix 4” é o maior romance do ano. Lindo filme sobre o amor reconstruindo realidades a partir da fusão com o virtual. Vide o maior exemplo disso na cena do morango orgânico, pois só é possível recriar a representação de algo real a partir da memória de virtualidade de seu significante mais remoto junto com a saudade humana.
Mas só um detalhe: em nenhum momento foi dito aqui que as alterações seriam "melhores" do que o original. Muito pelo contrário: estamos chamando de ferramentas e próteses desde o princípio nesse texto. A diferença é que este crivo crítico acredita que valeu diminuir arquétipos originais para o tamanho da história que Lana pretendia contar agora. Não é uma história gigante. É uma revisitação quase intimista, focada no duo principal. E isso honesto é algo bastante honesto.
A metalinguagem com o primeiro filme é muito intrigante (vale muitíssimo a pena revê-lo, mesmo que não se reveja os outros dois da trilogia original). E isso transforma esta ponte numa excelente metáfora de nós mesmos presos na nossa rotina (ainda mais com a pandemia), um lugar onde as pílulas azuis são um placebo viciante para anestesiar e não poder sentir mais a realidade. Vira uma discussão sobre o engessamento de paradigmas e como nos libertar sem perder nossa essência.
Essa analogia geracional com os próprios fãs que envelheceram num mundo influenciado pela tecnologia do filme é algo muito pungente, simbolizando o quanto a Matrix ainda é mais real em nossos celulares e smart TVs do que pensamos, e o quanto só é livre aqueles que possuem ciência de sua prisão. Vide o avanço que este exemplar dá em relação aos anteriores não mais colocando as máquinas e as inteligências artificiais como maiores vilões, já que elas também podem ter livre arbítrio e escolherem ficar do lado dos humanos, mas sim os nosso próprios semelhantes. O homem inimigo do próprio homem. – Como a ótima sequência que faz homenagem a referências do novo Cult coreano "Invasão Zumbi" (quem diria).
Como último aviso, no meio da velha discussão entre o que é real e o que não é, atentem que tudo é real, contanto que você sinta. Não analise demais, apenas viva o momento. Até mesmo a montagem e linguagem do velho e famoso “bullet time” criado no primeiro exemplar são parodiados neste filme, porque são literalmente outros tempos. E não se deixem levar por dados ou algoritmos na análise do sistema, senão podem perder um pouco de distanciamento no quadro geral.
Já por outro lado, mudando agora de filme, é bastante compreensível que todos no Brasil estejam se identificando muito com “Não Olhe para Cima” (“Don’t Look Up”) de Adam McKay na #Netflix. Para nós brasileiros, decerto o filme fala ainda mais alto. É algo necessário como pauta, principalmente pelas analogias involuntárias com a despolítica atual e o negacionismo histórico. Explica-se: no filme, o povo é levado a não acreditar que um meteoro irá atingir a Terra e destruir o planeta (enquanto aqui sofremos com pessoas que desacreditaram a pandemia e lutaram contra a vacina sem qualquer fundamento científico).
Porém, como filme, há certos incômodos de linguagem que talvez enfraqueçam um diálogo mais amplo. Como paródia, falta anarquia à la Monthy Python. Como linguagem, tudo é hiperbólico e repetitivo, para o caso de alguém não entender 100% o que já havia sido afirmado. Numa era de fake news, é natural ver a hipérbole viral como estética, mas, como filme, faltou intenção de refinamento. Mesmo com elenco mega estelar, e talvez até mesmo em detrimento dele, pois não há aproveitamento real de tantos nomes consagrados que viram estereótipos rasos: De Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence a Meryl Streep e Cate Blanchett.
Não obstante a narrativa aparentar que Jennifer Lawrence seja apresentada como protagonista de início, sua personagem, uma cientista astrônoma que defende a fundamentação científica (e que muitos estão enxergando como nossa Natália Pasternak no Brasil), vai diluindo apenas como disparador inicial e depois sendo levada pela correnteza. Sua construção é monocórdia e sem camadas, apesar da evidente e sempre necessária crítica à misoginia estrutural.
Até quase parece levar a crer no final do segundo ato que sua personagem se transformaria num símbolo anarquista dos rejeitados, mas nem isso, porque o outro cientista interpretado por Leonardo Dicaprio, depois de ter se arrependido por se vender, decide gritar também e ser aceito na broderagem da histeria masculina. Sem falar que a subtrama de Timothée Chalamet é completamente descartável, apesar de o evangelismo simbolizado por seu personagem falar ainda mais alto para os brasileiros.
O segundo ato é repetitivo e Deus Ex Machínico. A paródia ácida se torna caricatura rasgada e, como já referido acima, sem a real anarquia tipo Monty Phyton, parece subestimar o potencial de reflexão. Sem falar no total desperdício do ator Rob Morgan, o terceiro vértice da ciência ligado à interseccionalidade com questões raciais no filme. Porém, Dicaprio realmente está ótimo em sua atuação analisada isoladamente, até porque o roteiro sacrifica o desenvolvimento de todo mundo por ele, chegando a usar uns três grandes artistas como suas escadas.
É bom avisar que há duas cenas pós crédito, mas que só reafirmam a tônica da bobagem intencional, mesmo após a ótima seqüência do jantar aludindo ao cult "Impacto Profundo" de Mimi Leder. Não que tudo isso já não estivesse presente em obras anteriores de McKay... Seja nas que acertam ou erram o alvo. As piadas às vezes parecem o velho Saturday Night Live, datado, até porque o próprio famoso humorístico já se renovou inúmeras vezes, fazendo com que "Não Olhe para Cima" pareça sua versão ultrapassada de esquetes com perucas e maquiagens bufonas, sem sutileza ou ironia alguma.
Evidente que McKay às vezes acerta o alvo, como em "A Grande Aposta" (ao menos ao ver deste crítico), ou erre feio, como em "Vice" (cujas cenas pós crédito conseguem, inclusive, piorar ainda mais a interpretação do filme). Mas, aqui, tais cenas reforçam todas as intenções mais superficiais. Diminuem valores. A melhor (e única) frase da personagem de Mark Rylance com real valor no filme, referindo-se a estatísticas e probabilidades para DiCaprio em determinado momento da trama, é logo esvaziada pela reiteração dessas estatísticas para Streep com outro sentido, muito mais vão e escatológico -- só pra citar um exemplo.
E o fato de um filme com muitas divergências talvez configurar caso de ser um "fenômeno" a ser estudado não significa que não possa ou até deva ser abarcado pelo crivo crítico -- e que isso também não signifique que a pessoa esteja deixando de defender seu campo ideológico (mesmo que o filme seja da mesma "ideologia", teoricamente falando). Muito pelo contrário, fenômenos possuem campos específicos de estudo da fenomenologia. Podemos analisar o filme pela sociologia, pela antropologia, pela psicologia ou etc... Mas a crítica de cinema, apesar de poder beber da fonte de todas estas referências acima, também possui sua própria fonte, advinda de uma história de linguagem e estética de obras e pensadores prévios. Impossível não mergulhar neles também. Um resultado não exclui o outro.
Mas, respeitosamente, é bom repetir que também seja compreensível que a catarse gerada especificamente no Brasil após a saturação desses dois anos amplie a experiência do filme nesse momento histórico específico. É muito difícil pra os brasileiros não lavar a alma com figuras parodiadas tipo Carluxo, Pazuello e até Bolsonaro, etc., ainda mais como agentes assumidos do Apocalipse. No entanto, também há de se afirmar que a nossa realidade dá de mil na história do asteroide neste filme, então nem contemplou tanto assim a catarse almejada pela analogia.
PS. Montagem da imagem via @canatovitor
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.