Sempre que uma obra literária de grande porte é prometida para os cinemas tendemos a nos perguntar várias coisas. O filme será fiel ao livro? A pessoa que dirigir conseguirá imprimir sua marca autoral? Isto pode alterar a autoralidade do original? A sétima arte é algo completamente à parte da literatura, ao mesmo tempo em que possuem muitas convergências em contar histórias: a primeira prefere mostrar, e a segunda existe a partir do relato, de contar coisas que as pessoas só podem ver em sua mente.
Dentro desta balança de tênue equilíbrio, a obra mais vendida da ficção-científica na história, “Duna” de Frank Herbert já foi adaptada antes para o audiovisual... Inclusive, o foi por cineastas renomados por serem autorais. Foi o caso do ídolo David Lynch, que foi contratado na década de 80 pela Universal e pelo poderoso produtor italiano Dino de Laurentiis para trazer algo tão icônico visualmente quanto havia sido “Star Wars” e “Blade Runner” poucos anos antes. Porém, havia sido um projeto de estúdio, e toda a experimentação conhecida de Lynch foi contida por uma produção contratualmente amarrada, resultando num fracasso retumbante, análogo a outros alvos que miraram errado na época como “Flash Gordon” de 1980 (este tido hoje como Cult trash).
Ainda assim, este crítico vai lhes dizer algo bastante polêmico, e dar crédito para a versão de 1984 do mestre responsável por obras-primas como “Veludo Azul” e “Cidade dos Sonhos”, já ousada na bizarrice de tom e nas cores, em tintas de verde e amarelo diante dos predominantes laranja e preto da areia e dos figurinos, respectivamente.
O ritmo apressado para conter a enorme quantidade de informação do livro não privava a aventura de uma digna jornada do herói, com risco e perigo em tensões contrapostas desde a primeira seqüência. Relevando-se a forma engessada para o modo narrativo sci-fi da época, não deixava de possuir lados múltiplos e não tão maniqueístas (quem introduz o prefácio é a filha do Imperador, infiltrando desde cedo os tabuleiros com peças opositivas). Sem falar que já despontava como protagonista o ator Kyle MacLachlan, a se tornar uma assinatura de Lynch em seus filmes futuros (maior legado do óbito cinematográfico anunciado precocemente de “Duna”).
Ainda que cercado por exigências externas, como os cenários distópicos aludindo a outros filmes, ou o elenco internacional, acessível apenas ao porte do bolso de Laurentiis (como Silvana Mangano e Max Von Sydow em meio à Sting e até Sean Young, membro também de “Blade Runner” em 1982), havia ali magia! Especialmente, no âmbito estético da década de 80 de outros filmes que se misturavam à fantasia, como “Krull”, “Labirinto” e “A Lenda”, graças ao lado místico da mitologia ritualística de Herbert. Há lacunas deixadas para o oculto, não precisando desvelar tudo. E as cenas de vislumbre cenográfico se refreavam ao menos para algumas declamações do elenco estelar, como num palco privado, a despeito das maquiagens exageradas mesmo para a época.
Isso tudo foi o suficiente para pescar o imaginário da criança que eu era na época, e me tornaria fã de Lynch desde então, procurando por ‘drogas mais pesadas’ em sua filmografia graças à porta de entrada onde ele capturou o lúdico em mim. Até hoje defendo sua coragem ali, mesmo acuado, e me sinto à vontade por ter alguns poucos valiosos defensores desta corrente minoritária, como o filósofo crítico esloveno Slavoj Zizek.
Vale ressaltar também que até outros nomes autorais tentaram adaptar a obra de Herbert, como o famoso projeto na década de 70 do chileno Alejandro Jodorowsky, mais um que se identifica com a linguagem onírica e delirante dos sonhos e pesadelos, e que se tornaria atraído pelo original como mosca. Por nunca ter conseguido ir à frente, mas tendo gerado até mesmo storyboards e esboços de figurinos e cenários, foi considerado o filme mais ambicioso que jamais seria filmado – com direito a um documentário sobre o assunto de 2013, “Jodorowsky’s Dune”, a demonstrar uma proposta de se fazer algo ainda mais carnavalesco do que a versão de 1984, e comprovando que Lynch não estava num caminho tão errado assim.
Agora, um dos maiores cineastas contemporâneos, o franco-canadense Denis Villeneuve, responsável por aclamações como “Incêndios” (2010) e “A Chegada” (2016), ousou propor uma nova pegada com orçamento milionário. Contudo, infelizmente, desta vez “Duna” é um suntuoso parque de diversões sem alma para brincar. Às vezes, parece um filme composto de sucessivos trailers. No máximo dos máximos, em elenco tão estelar e diverso (de Oscar Isaac a Zendaya e Timothée Chalamet), quem suja as mãos e mergulha no parquinho de areia pra se divertir mesmo é a excelente Rebecca Ferguson (de “Missão: Impossível – Nação Secreta”, 2015), no papel da mãe do protagonista Paul Atreides (Chalamet).
Ainda assim, ninguém está dizendo aqui que não haja entretenimento nesta empreitada. Existem vários pequenos pontos acertados e, decerto, um dos maiores é o primor de espetáculo sonoro, que conta a história pelos ruídos e trilha do experiente Hans Zimmer ‘quase’ melhor que o riscado de Frank Herbert. Há um peso nos atos e fatos descritivos desta cosmologia com camadas narrativas que prescindem até das imagens. As pedras e metais possuem sons próprios, com pesos ostentados e temidos em si, assim como as entoações e respiros a soar feito um mantra, o que reforça o lado espiritual e ecológico de “Duna”.
Para além do desenho de som de obras como “Star Wars” (1977) que primeiro criaram inovações técnicas impressionantes no foley, há de exemplo a máquina de barbear dentro da panela que gerou o ruído característico dos cruzadores estelares, aqui esse trabalho vai além e literalmente ajuda a contar a história. Não está ali apenas para impressionar ou tornar a cena épica, destacá-la da narrativa planificada, e sim para tridimensionalizar os contornos e crenças dos povos em luta intergaláctica (como as pistas que ouvimos nos sonhos premonitórios de Paul, o campo eletromagnético de silêncio ou mesmo a aura criada para a famosa especiaria, disputada no filme inteiro).
Todavia, quando lancei esse pensamento que forma os três parágrafos acima como um tweet adiantado, prévio a esse texto com a crítica completa, e repliquei no letterboxd, comecei a receber uma saraivada de reclamações e indignações. E olha que nem era a presente crítica inteira ainda (ora em suas mãos).
Aparentemente, minha perspectiva desta vez foi polêmica e voto vencido perante os fãs da saga e/ou de Villeneuve. Mas se engana quem acha que eu não li o material original de Frank Herbert e que eu não conheça muito bem o livro. Inclusive, sou fã de Villeneuve também. Estive no polêmico Fla X Flu ultra polarizado do divisor de águas "Blade Runner 2049" (2017) e ajudei com que fosse eleito pela Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, da qual faço parte, como um dos melhores filmes daquele ano.
Alguns fãs ardorosos do livro vieram dizer que aquilo nomeado por mim como "sem alma" seria na verdade uma adaptação fiel da postura austera refletida em mentalidades como a famosa litania contra o medo, que replico aqui para os que não leram o original ou sequer viram o filme ou o trailer ainda: "Eu não temerei. O medo é o assassino da mente. O medo é a morte pequena que traz a total obliteração. Eu enfrentarei meu medo. Permitirei que ele passe sobre mim e através de mim. E quando houver passado voltarei meu olhar interior para ver sua trilha. Para onde o medo se foi, não haverá nada. Só eu restarei."
Mas não adianta tentar pregar para convertido, não é mesmo? Afinal, a atriz que mais elogiei logo acima no pequeno comentário que havia feito até então foi justamente Rebecca Ferguson como Jessica Atreides, uma membro da irmandade Bene Gesserit pra quem a litania é lei tal qual a ‘força’ para Yoda em “Star Wars”. E, mesmo sendo a epítome da representação da austeridade à la Jedi, a atuação da atriz é a que mais assume riscos e que de fato se diverte nos luxuosos brinquedos do parquinho de areia que Villeneuve criou. Então, a questão não é a "austeridade", e sim a falta de alma no roteiro (e não do texto original).
E olhem que dizer que não tem alma não é sinônimo de dizer que desgostei do filme, apenas que a produção tivesse deixado se gostar ainda mais do resultado. Afinal, defendo desde já que o desenho de som merece o Oscar 2022 pra ontem! Um trabalho primoroso!
Para quem estiver se sentindo ainda um pouco perdido em meio a expressões e conceitos próprios do universo de “Duna”, como a irmandade Bene Gesserit, que é uma seita de mulheres com poderes especiais, tipo freiras que podem casar, e cujo conhecimento do cosmo possui seus próprios interesses à parte do jogo de outras personagens; ou mesmo a tal especiaria que é o pivô das guerras e traições entre planetas, vamos retroceder um pouco nesse texto para apresentar ao leigo:
Sem dar spoilers, o núcleo duro da trama principal gira em torno de uma disputa entre três principais pólos de poder: o da família Atreides, o da família Harkonnen e o Imperador. Mesmo que as coisas não sejam tão dicotômicas assim, pode-se dizer que a primeira seria a protagonista da história, e todas as outras partes antagonistas, num momento ou noutro.
O título “Duna” é também o apelido para o planeta Arrakis, cujos desertos de areia são os únicos a produzir a chamada especiaria, que seria um elemento capaz de prolongar a vida e servir de combustível para as naves atravessarem sistemas solares. Por muito tempo esse posto ficou nas mãos dos Harkonnen, que ficaram extremamente ricos e temidos por isso, mas agora o Imperador teria passado tal cargo de extração das especiarias para os Atreides. Tudo isso seria um teste, um jogo de forças, de modo a diminuir a influência que os protagonistas vinham exercendo no Império e que poderia ameaçar o status quo.
É evidente que haverá reviravoltas e decepções entre amigos e familiares, e nem precisaríamos de spoiler para saber que uma dramaturgia digna de intrigas palacianas colocaria todos contra todos desde os tempos áureos de “Édipo Rei” a “Macbeth”. Porém, mesmo óbvio e previsível, o livro tece essas questões com extrema elegância, especialmente por um fator maior: podemos ouvir os pensamentos das personagens e suas desconfianças uns dos outros. E isso não é apenas um capricho narrativo, e sim um trunfo dramatúrgico, já que a mera hesitação ao titubear perante alguém que seria de confiança já gera desconforto e ressentimento recíprocos muito úteis para a mise-en-scène.
Sem falar que, justamente por causa da mística inerente ao material, esse importante elemento lingüístico de Herbert, que existia até no filme de Lynch, é um dosador da quebra de confiança entre as partes, já que os jogadores que melhor “lêem” a mente uns dos outros saem na frente... Em parte, é por isso que a personagem Jessica Atreides (Ferguson) não só talvez seja a mais fidedigna ao livro, como também é a que conseguiu incorporar melhor os trejeitos que compensam a ausência da voz mental nesta adaptação cinematográfica. Como uma Bene Gesserit, não é que possamos chamá-la de telepata, mas sua capacidade de observação e dedução a fazem uma oponente admirável.
As dúvidas e medos internos que podemos ler externalizados no livro aqui restam apenas como vestígios na persona de Jessica, enquanto que todo o risco e perigo de duvidar uns dos outros, na contenda incluída através da introdução da primeira parte, acabam esvaziados no filme de Villeneuve. Numa projeção de 2h30, quase dois terços são reservados para a apresentação da lógica interna a este universo que, porém, soa como inócuo ao remover da equação o peso da descoberta após todas as suspeitas.
O próprio treinamento de Paul na primeira seqüência de ação aqui parece apenas amostra grátis exibicionista dos efeitos especiais para criar um escudo holográfico muito menos vergonhoso do que o de 1984 (culpa da precariedade dos computadores da época), enquanto que nem a defeituosa obra de Lynch ignora os pensamentos de Paul a duvidar até de seu mestre enquanto analisa seus movimentos questionáveis naquela manhã.
Ninguém está acima de suspeita no original, e aqui a gente está tão ocupado com o vislumbre lançado na tela que, após 1h30, quando de fato a trama se move, você mal se importa com quais peças foram descartadas no tabuleiro. Não obstante, claro, a incrível fotografia de Greig Fraser em cenas noturnas iluminadas pelas chamas (às vezes escuras demais para esconder a transição entre os pontos da computação gráfica).
As motivações de algumas personagens também foram desleixadas. Enquanto um ou outro intérprete conseguiu ajudar a trazer uma marca para seus papéis, como o maravilhoso veterano Stephen McKinley Henderson (“Um Limite Entre Nós”, 2016) na pele o consultor dos Atreides Thufir Hawat, roubando cada cena em que aparece, ou a surpresa do bom aproveitamento do galã de ação Jason Momoa (“Aquaman”, 2018) como o militar Duncan Idaho, que está ali pela boa coreografia e olhares de bom moço, dentro e fora das telas – independente de seus diálogos descartáveis, é uma de suas coreografias, por exemplo, que serve de eficiente desenvolvimento de personagem para o colega de elenco Chalamet, algo já entregue na montagem do trailer do filme, e que não podemos considerar spoiler.
Sem falar na provável melhor alteração do original com a escalação de Sharon Duncan-Brewster (“Rogue One”, 2016) como a doutora bióloga Liet Kynes, mudando seu gênero e raça, outrora masculino e branco (já pertencente ao deuso Max Von Sydow em 1984), e que agora acrescenta outros meandros muito bonitos e poéticos na balança entre os governantes e o povo do planeta Arrakis.
De forma alguma é um filme para se menosprezar nem subestimar, pois Villeneuve vem cada vez mais domando a máquina de Hollywood de modo a fundir a expectativa de um blockbuster com uma pegada mais autoral, típica da liberdade de orçamentos mais modestos. Ele havia conseguido um triunfo com “Blade Runner 2049”, independente da descrença de público, justamente por traduzir em imagem, cores e quadros uma poderosa semiótica de significados que falavam mais alto que quaisquer diálogos. Aqui, há também muitas imagens com simbologias profundas, faltando apenas ter ligado melhor os pontinhos.
Entre mortos e feridos, salvaram-se os fãs ardorosos, que conseguiram uma adaptação bastante fiel em termos de atos originais, assim como boas caracterizações, figurinos e maquiagem mais sóbria, para tornar crível a parte fantástica. Porém, com a decisão de dividir a história em mais de um filme, com um final propositalmente anticlimático e intimista, até com plano fechado ao invés de uma típica panorâmica à la trilogia “Senhor dos Anéis”, resta o fato de que elementos tão sofisticados e onerosos parecem não harmonizar pra ultrapassar um patamar inesquecível, mesmo num espetáculo digno da tela grande e tecnologia Dolby de áudio...
Desde o maravilhamento da fotografia na plasticidade e, por outro lado, a trilha de Hans Zimmer um tom acima pra carregar os fãs, tudo parece milimetricamente calculado para funcionar num parque de diversões que te deixa ver, mas não te deixa entrar. Onde os brinquedos são caros, mas não estão sequer à venda, e os participantes da gincana são peças intocáveis de uma brincadeira com hora pra acabar. Tudo um pouco frio e ascético demais pra não deixar a mistura de elementos gerar o acontecimento e a surpresa tão necessários ao cinema. Divirta-se, mas não se apegue, porque o filme pode deixar o livro na mão...
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.