Por Estevan Mazzuia *
Vamos falar de intolerância.
“Isso não pode continuar existindo. Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do piauiense. Vamos acabar com isso”
Desde que me conheço por gente, sou apaixonado por desfiles de carnaval. Mas minha trajetória do sofá de casa para a avenida, passando pelas arquibancadas, foi lenta e gradual. Lembro-me, em 2001, de ter ido ao Anhembi assistir ao desfile do grupo de acesso, no domingo de carnaval, quando o mundo está de olho na Sapucaí. Pois lá estava eu, ente tantos outros abnegados, naquela madrugada fria, longe dos holofotes televisivos, sendo surpreendido por uma maravilhosa Unidos de Vila Maria, recém-chegada do terceiro grupo, que acabaria conquistando o campeonato, dias depois, com um maravilhoso desfile sobre telenovelas.
“O erro da ditadura foi torturar e não matar”
Uma das mais antigas e tradicionais escolas de samba paulistanas, fundada em 1954, desfilara em 1973 pela derradeira vez entre as principais escolas e, desde então, amargou anos e anos de dissabores, culminando com o rebaixamento para o quinto grupo, em 1996. Os ventos mudaram e, com quatro acessos em cinco anos, incluindo o título em 2001, a escola abriria os desfiles do grupo principal em 2002. E as circunstâncias da vida me colocariam no meio disso tudo, mais precisamente da bateria, com meu humilde tamborim. Às 23 horas de 8 de fevereiro de 2002 eu debutava como integrante de um desfile carnavalesco.
“Eu sou favorável à tortura. Tu sabe disso. E o povo é favorável a isso também”
Com 2500 componentes distribuídos em 21 alas, a agremiação da zona norte apresentou o enredo “Intolerância, não! Viva e deixe viver!”, desenvolvido pelo carnavalesco Wagner Santos. No abre-alas, “o julgamento do Salvador”, a representação de Cristo como o exemplo de tolerância a ser seguido.
“Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre. Vou botar esses picaretas para correr do Acre. Já que gosta tanto da Venezuela, essa turma tem que ir para lá”
O primeiro setor do desfile fazia referências à intolerância religiosa e perseguições, por motivos religiosos, que tiveram na Inquisição Medieval seu apogeu. Em meio a uma fogueira, Joana D’Arc era representada na segunda alegoria.
“Somos um país cristão. Não existe essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem”
Logo atrás, a bateria, comandada pelo Mestre Colorado, representava a união dos povos, e era seguida por diversas alas que simbolizavam povos perseguidos: maias, astecas, ciganos e judeus. O terceiro carro da escola era uma representação de Auschwitz, com direito a um certo ditador como destaque.
“Ele (índio Jacinaldo Barbosa) devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens”
A ala das baianas representava as Mães da Praça de Maio, que protestaram contra a ditadura militar argentina, que fez com que seus filhos desaparecessem.
“Quem procura osso é cachorro”
Outra ala trazia uma visão carnavalizada da morte. Para Wagner Santos, a única intolerância aceitável é aquela contra o que leva à morte e à destruição.
“Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar para fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”
O setor seguinte aludia à intolerância nas formas de racismo e xenofobia.
“Fui num quilombola em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Acho que nem para procriadores servem mais”
“A escória do mundo está chegando ao Brasil como se nós não tivéssemos problema demais para resolver”
O preconceito contra obesos e mulheres também esteve presente no desfile.
“Eu jamais ia estuprar você porque você não merece”
“Por isso o cara paga menos para a mulher (porque ela engravida)”
“Foram quatro homens. A quinta eu dei uma fraquejada, e veio uma mulher”
O carro “Alegria Alegria” encerrava o setor, trazendo diversas drag queens e muitas cores, em referência à homofobia.
“Prefiro que (meu filho) morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”
“O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro, ele muda o comportamento dele. Tá certo?”
“90% desses meninos adotados (por um casal gay) vão ser homossexuais e vão ser garotos de programa com toda certeza”
“Não existe homofobia no Brasil. A maioria dos que morrem, 90% dos homossexuais que morrem, morre em locais de consumo de drogas, em local de prostituição, ou executado pelo próprio parceiro”
“O cara vem pedir dinheiro para mim para ajudar os aidéticos. A maioria é por compartilhamento de seringa ou homossexualismo. Não vou ajudar porra nenhuma! Vou ajudar o garoto que é decente”
No último setor, foi lembrada a intolerância que levou à perseguição de sambistas, no início do século XX (embora persista até os dias atuais, de forma um pouco mais velada), o preconceito contra idosos e contra a imprensa.
“Cala a boca (…) a Globo é imprensa de merda, imprensa podre”
A ala das crianças lembrava da importância da educação para desenvolver a tolerância e, na última alegoria, cinco mil pãezinhos, doados por padeiros da Vila Maria, faziam parte da decoração, devidamente envernizados, para resistir à chuva, que não deu trégua durante o desfile. A mensagem do enredo é de que a intolerância gera fome e miséria.
O espetacular samba de Carlinhos de Jesus, Dilai, Maurinho de Jesus, Marcinho Swing e Minho, foi puxado por André Pantera:
“Tantos sofrendo em vão, quanta destruição / Por preconceitos
E nas lutas desiguais, muitos ideais / Jamais desfeitos
Fim da discriminação! Os meus versos trazem a renovação
Será, será… que os nossos povos vão se irmanar? Na realidade, o sonho não pode acabar”
Com 194 pontos, a escola conquistou um honroso 11º lugar, dando início a uma sequência de doze desfiles no grupo principal, chegando ao vice-campeonato em 2007, com um enredo sobre a cidade de Cubatão. Rebaixada em 2013, a escola voltou a ser campeã do acesso em 2014 e, desde então, segue firme atrás do primeiro título de sua história, no grupo especial, tendo conquistado um quinto lugar em 2020.
Obviamente, guardo com muito carinho aquele desfile. Jamais imaginei que a intolerância voltasse a comandar meu país. Tenho a impressão que aquele desfile recomeçou em 1º de janeiro de 2019, mas sem alegria, sem brilho, sem cor. Vejo intolerância por todos os lados e, a cada dia que passa, aumenta minha tristeza. Como pudemos deixar que as coisas chegassem a esse ponto?
A intolerância é uma doença que causa ódio e cegueira. Caminhamos para a fome e a miséria, tal qual prenunciado pela Vila Maria em seu desfile.
Resta-nos resistir e esperar que a vacina contra esse mal não chegue tarde demais, e possamos extravasar de alegria, como desejava a Vila Maria em seu refrão:
“Vou extravasar e ninguém pode me conter / Sou Vila Maria / Viva e deixe viver”.
Jair, viva e deixe viver, homem!
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.